"A modernización do rural ia contra umha forma de viver e produzir que transformavam de fora e drasticamente"
ENTREVISTA | Alba Díaz Geada
Antom Santos | Lugo | 14 de fevereiro de 2020. A história agrária da Galiza foi um dos campos de estudo mais produtivos nas últimas décadas; graças a ele, conhecemos como se foi conformando a sociedade rural contemporánea, em relaçom contraditória com um Estado e um mercado cada vez mais poderosos. A historiografia deu-nos conta dum campesino que se fijo proprietário, de poderosas redes associativas que se enfrentárom ao caciquismo, e dumha lógica produtiva que, riscada de atrasada, fora quem de manter umha populaçom extensa no aproveitamento minucioso do espaço. Ainda, umha última pergunta restava por ser respondida ou, quando menos, formulada: como esmoreceu este velho complexo agrário? Alba Díaz Geada, jovem historiadora da Marinha, tencionou abordá-la na sua tese, Mudar en común. Cambios económicos, sociais e culturais no rural galego do franquismo e da transición (1959-1982), defendida na USC em 2013.
A sensaçom de vivermos o fim dumha época está, em certa medida, presente em cada galego adulto, desde que é, com muita provabilidade, filho ou neto de labregos. As mudanças na paisagem, nas formas de produçom e ocupaçom do território, na língua ou no sotaque, na transmisom da experiência ou no lazer, som elementos já constatáveis na biografia de qualquer pessoa que entre na fase de madurez da sua vida. Alba Díaz deu o passo de enfrentar sistematicamente o estudo desta viragem histórica, que de constataçom mais ou menos difusa passou agora, graças à sua tese de doutoramento, a entender-se como um processo racionalizável; umha transformaçom global susceptível de submeter-se a valoraçom e crítica.
Alba, hoje professora de Antropologia na Faculdade de Humanidades de Lugo, lembra como nos começos da sua atracçom pola História nunca poderia suspeitar este desenlace intelectual. “Se recúo à minha curiosidade primeira por esta disciplina, lembro sempre um aula do colégio, em que a professora de História captara a minha atençom ao falar de imperialismo e colonialismo. Eu nom tinha umha ideia precisa do que se tratava, mas acho que esse foi o primeiro acordar da minha orientaçom posterior”.
Já em Compostela, encontrou-se com um viçoso campo de estudos agraristas que tinha mais de três décadas de vida. Graduada, familiarizou-se com a metodologia investigadora trabalhando com a fonte oral, e achegando-se a certas dinámicas normalmente mais desatendidas quando se trata do rural: a nacionalizaçom, os movimentos sociais, ou a assunçom da lógica de direitos e deveres dos processos democratizadores. A decantaçom cara um objectivo claro, porém, nom veu por causa dum mero exercício intelectual, senom por umha pergunta que se entretecia com a própria biografia.
“Na investigaçom pretendim responder à pergunta de porque a nossa vida é tam diferente à das nossas avôs”
A história e a vida
“Começou a bolir em mim umha pergunta: por que a nossa vida é tam distinta da das nossas avôs? De início só tinha esta interrogaçom muito genérica, sem maiores pretensons, e sem umha rota clara de que caminho seguir. Mas aí estava”. Na verdade, a historiadora estava a colocar, dum prisma pessoal, umha questom histórica essencial, a mesma que formulara o historiador inglês Eric Hobsbawm: “a mudança social e de maior alcanço da segunda metade deste século XX, e o que nos arreda para sempre do mundo do passado, é a morte do campesinado”.
Alba, nascida na década de 80, pertence a umha geraçom que ainda tem presente a memória da Reforma política e dos processos de mobilizaçom do agro; também dumha certa industrializaçom do sector que, como tantas outras cousas, nom culminou nas promessas douradas que oferecera o poder. “Eu sempre tivem muito presente umha ideia de ambiguidade, de ambivalência. Quando estudava, e logo quando comecei a investigar, fum sempre ciente de pertencer a umha geraçom aberta a grandes avantagens: umha formaçom regrada, a possibilidade de acesso à cultura, certas expectativas de ascenso social…mas a um tempo, sabia que esse campo que se abria empurrava-nos sempre a deixar o nosso mundo, a marchar”.
Com o tempo, a inquietude intelectual ia assi acoutando-se, e no doutoramento, Alba ia somando perguntas mais específicas a essa incógnita central: em que consistira essa mudança? Fora consensuada ou imposta? Em que lugar deixava à comunidade? “Ao primeiro imponhia-me o alcanço da questom, mas aos poucos fum concretizando e avançando”.
Segundo a ortodóxia económica e nalgumha medida historiográfica, vulgarizada mediaticamente, todos os territórios do mundo passam dum atraso inconcreto, baseado na agricultura e na precariedade material, a umha sociedade de serviços post-industrial e urbana. Consumando assim umha série de fases prefixadas, todos os povos, incluído o galego, devem viver a sua própria «modernizaçom».
“Umha primeira pretensom para mim, muito influenciada por autores como E.P. Thompson, que emendara precisamente esta visom das cousas foi problematizar o termo ‘modernizaçom’. Problematizar nom quer dizer julgar, nem comparar, senom simplesmente deixar de ver como natural e inelutável um certo processo”.
Com efeito, e especialmente no que diz respeito o agro galego, a modernizaçom “obedeceu a um propósito político” enunciado explicitamente, que passava por capitalizar, tecnificar e especializar umha velha civilizaçom com altos índices de autosuficiência e comunitarismo. No Estado espanhol, o Serviço de Extensom Agrária, fundado em 1955 com a divisa de “melhorar o nível do agricultor”, serviu como ferramenta de socializaçom e apoio da mudança desejada polas elites.
“Assi que fum mergulhando nas fontes, decatei-me de que a mudança nom obedecia a nenhuma das ideias simplórias que pudéssemos manejar. Obviamente, nom foi um processo natural, na que a comunidade adopta sem receio nenhum o que se lhe traz do exterior; mas tampouco foi umha apisonadora, umha pura imposiçom de directrizes alheias à vida no agro”.
Compreender esta vasta zona gris foi umha das tarefas fundamentais da tese: “temos que levar em conta que muitas das pessoas que se oponhiam às grandes medidas da época, como a concentraçom parcelária, nom o formulavam, nom só por estarmos num regime autoritário, senom por terem medo a ficarem como atrasadas ou ignorantes. Mas é que nos mesmos técnicos responsabilizados do plano reconheciam, anos depois, que algumhas das suas medidas foram traumáticas, que iam contra umha forma de viver e produzir que transformavam de fora e drasticamente”.
No Estado espanhol, o Serviço de Extensom Agrária, fundado em 1955 com a divisa de “melhorar o nível do agricultor”, serviu como ferramenta de socializaçom e apoio da mudança desejada polas elites.
No caso de alguns ámbitos específicos, como a despossessom dos montes comunais polo Património Florestal do Estado na década de 40, favorecendo a repovoaçom forçosa em detrimento do pastoreio, a intervençom foi decidida e violenta: “neste ponto a historiografia reconhece que nom houvo nem diálogo nem consenso”. Mas em outros espaços, aparentemente desvinculados da economia e até da política, as consequências eram também dolorosas. “Pensemos por exemplo na intervençom dos Agentes de Economia Doméstica“, continua Alba, “no rural nom só existia umha forma de produzir, senom de viver, o que em termos gramscianos poderiamos entender como um sentido comum comunitário, e que entrava em crise com certas propostas como a dos Agentes”.
Afeitos como estamos à nossa perspectiva urbana, onde trabalho, vivenda e lazer aparecem como compartimentos estancos, perdemos de vista que na sociedade tradicional conformavam um todo indistinguível. “No franquismo, começou aquela intervençom, teoricamente bem intencionada, que queria inculcar na mulher labrega formas de gestom do fogar, de ‘optimizaçom’ da casa, de limpeza, que eram próprias do mundo urbano, mas que mal acaíam com a vida dumha mulher que repartia o seu tempo de trabalho entre o lar, o cuidado dos animais e a horta. É só um exemplo entre muitos, mas representa muito bem a penetraçom da ideia, de consequências tam perduráveis, de ‘nós nom sabemos fazer bem as cousas’. Por umha parte chega-se a acreditar na própria ignoráncia, na sensaçom de desvalimento e por outra, quando o campo se moderniza, quando o adapta o de fora, começa a esmorecer, quase até a desapariçom. A gente pergunta-se, ‘que fixemos mal?’ Som processos muito difíceis de digerir”.
“Muita gente desconhece que houvo experiências perduráveis de organizaçom comunitária da economia, da cultura, das relaçons sociais. Que nom som as nossas? Nom som, nom, mas delas há muito que aprender.”
Valorar, idealizar, ponderar
Nem a história mais rigorosa e contrastada foge da subjectividade e, portanto, da valoraçom, pois tal desapego é impossível. As focagens que deitam um olhar crítico sobre os processos modernizadores adoitam receber as mesmas críticas: som saudosas, melancólicas, idealizam um passado que nunca existiu. Alba Díaz é ciente da acusaçom, e também do risco de incorrer num retrato de algo inexistente. “Eu gosto de partir dumha afirmaçom de Gramsci, que diz que a opressom pode topar-se em qualquer tipo de sociedade. Também em esta que estudamos, obviamente”.
A chave para superar os prejuízos está para ela em outro ponto: “se tomarmos o ponto de vista dos folcloristas do século XIX, é umha relíquia cultural inalterável, da noite dos tempos, que cumpre conservar como emblema dumha sociedade que morreu”.
Segundo a história social británica, a tradiçom, porém, nom é estática, e formaliza uns códigos de comportamento que venhem da negociaçom e da luita. “Tradicional é a cultura plebeia, tradicional é o potencial contra-hegemónico das culturas populares”, diz-nos Alba, volvendo a Thompson.
E se o contemplamos como algo que mudou, e que pode mudar em funçom da relaçom de forças, teremos que deixar de associá-lo com um reduto reaccionário: “por vezes, há opressons, e estas opressons, para naturalizar-se, recorrem a umha tradiçom que os ampara. Mas em outras ocasions, a tradiçom é um certo uso: do território, dos recursos, e esta tradiçom, como no caso dos montes em mao comum, é convertida em delito polo poder.”
Memória da miséria e ditadura
Longe das controvérsias académicas, quiçá a emenda mais séria à vindicaçom comunitária do passado, é a memória dos sobrevivintes. Galegas e galegos que conhecêrom aquela forma de vida lembram as penúrias materiais, a escasseza, a falta de horizontes. Alba tem reflectido também sobre esta memória nom letrada: “antes do mais eu diria que é umha memória contraditória. As pessoas de idade recordam todas aquelas realidades da dureza, e sem embargo alternam-nas com consideraçons mui distintas: ‘daquela estavam as aldeias cheias de gente’; ‘daquela si que nos divertíamos, havia com quem rir’; ‘sabíamos fazer de todo’… Para ponderar a reconstruçom pessoal do passado, cumpre fazer referência à idade dos protagonistas, e ao contexto que viviam na altura”.
Existe um potenciador das memórias positivas, que é a juventude, como também um distorsionador negativo, o regime político: “estas pessoas estám recordando umha cultura que desapareceu, e de passagem estám recordando a sua infáncia, a sua juventude, que som jeiras da vida associadas com experiências felizes”. Polo contrário, ao recriarem o agro tradicional, estám a recriar os anos da posguerra, da fome, da repressom. A necessidade de análises muito específicas é outro dos argumentos poderosos contra umha consideraçom genérica e sem matizes da «modernizaçom». “Eu chamo sempre a levar em conta que estas memórias negativas se dérom num contexto de regime ditatorial, de grandes privaçons, e de ausência de dinámicas de negociaçom e consenso; algo bem diferente, por exemplo, do que vai acontecer nos tempos da Transiçom, quando a politizaçom e o protagonismo popular conformam um ambiente totalmente diferente.”
Se ampliarmos a panorámica a outros contextos estatais, comprovaremos como a mudança que aqui se produziu nom foi a única imaginável, nem muito menos a melhor das possíveis: “puidem estudar o caso francês num estágio de investigaçom, e ali conhecim o muito que variam as cousas num contexto no que existe possibilidade de conflito regrado. Lá, por exemplo, certas expressons do sindicalismo agrário católico soubérom mediatizar o cámbio em favor do campesino. Também se potenciou um orgulho de agricultor, real e palpável, que aqui nom existiu do mesmo jeito”.
“As pessoas de idade recordam todas aquelas realidades da dureza, e sem embargo alternam-nas com consideraçons mui distintas: ‘daquela estavam as aldeias cheias de gente’; ‘daquela si que nos divertíamos, havia com quem rir…”
O futuro
Nom corresponde à historiadora, isto vai de seu, qualquer estimaçom do futuro. Ora, si corresponde reflectir sobre o uso social do seu saber, e sobre o potencial de formas de vida que, desaparecidas ou nom, desempoeirou dos arquivos. “Umha das realidades mais dramáticas às que assistim no caso galego foi à ruptura da transmisom da experiência. Essa falta de interesse em dar-nos umha herança, pola assunçom do tópico do atraso, de que o que se fazia antes nom valia em nenhum caso. E isto fai-nos perder conexom com aspectos muito importantes”.
Alba Díaz chama a atençom sobre certas noçons interessantes para o porvir. “E devido a estas lacunas, muita gente desconhece, sem ir mais longe, que boa parte do nosso território é de mao comum; ou que houvo experiências perduráveis de organizaçom comunitária da economia, da cultura, das relaçons sociais. Que nom som as nossas? Nom som, nom, mas delas há muito que aprender”.
A conurbaçom na que habitam a maioria dos galegos fai esquecer que o agro existe, ou que existiu, e mesmo entender que um futuro razoável passa porque as urbes e as aldeias volvam a tender pontes e a complementar-se. “Esta visom fragmentária das sociedades e dos espaços”, conclui Alba, “impede ter umha noçom cabal da nossa história”.
Como tal, podemos engadir nós, embota a capacidade para enxergarmos um futuro.
A entrevistada
Alba Díaz Geada
Alfoz, 1985. Doutora em História Contemporánea pola USC com a tese Mudar en común. Cambios económicos, sociais e culturais no rural galego. (1959-1982), USC, 2013. Autora do livro O campo en movemento. O papel do sindicalismo labrego no rural galego. (1964-1986), USC, 2011. Membro do Grupo de Investigaçom HISTAGRA, na actualidade professora ajudante de Antropologia Social na Faculdade de Humanidades de Lugo.
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A entrevistada
Alba Díaz Geada
Alfoz, 1985. Doutora em História Contemporánea pola USC com a tese Mudar en común. Cambios económicos, sociais e culturais no rural galego. (1959-1982), USC, 2013. Autora do livro O campo en movemento. O papel do sindicalismo labrego no rural galego. (1964-1986), USC, 2011. Membro do Grupo de Investigaçom HISTAGRA, na actualidade professora ajudante de Antropologia Social na Faculdade de Humanidades de Lugo.