Catalunha: nova folha de rota?
Análise | Oscar Valadares
Vigo | 20 de decembro. A poucas hora de que se efetive a reunião do governo espanhol em Barcelona e o encontro com o governo catalão —que a Moncloa insiste em que não seja chamado «cimeira» porque, asseguram, não se trata de interlocutores ao mesmo nível— o Partido Popular diz que o que procura o presidente Quim Torra é “derramamento de sangue” e uma “guerra civil”. A exclusiva, lançada por Pablo Casado, chega uns dias depois de que a Eslovénia se tivesse convertido em protagonista da política no Estado espanhol por uma frase de Torra deliberadamente tirada de contexto e deformada e de que o governo de Liubliana chamasse a consultas o embaixador español —o que, por sinal, não apareceu nos meios.
O de que o independentismo catalão esteja à procura de uma «guerra civil» poderia parecer um exabrupto se a informação que circula fosse independente ou, no mínimo, verossímil. Porém, os principais meios de comunicação espanhóis, que levam já anos a jogar a carta do sensacionalismo em todo o que tem a ver com a Catalunya, parecem dispostos a comprar a predição bélica e dedicam horas de emissão e quilómetros de tinta a mostrar como os CDR têm previsto balcanizar —outra palavra na moda— o principat, e como a polícia nacional e a guarda civil estão a preparar o dispositivo de segurança, que formalmente terão que coordenar os Mossos d’Esquadra, à volta dos quais esses mesmos meios têm levantado uma densa suspeita de quererem que tudo funcione mal para que o independentismo venha a dar um golpe de autoridade esse dia. Todo este complexo e contraditório desenho argumental ou, como se costuma dizer agora, todo este discurso dos acontecimentos, descansa, porém, num erro de base: acreditar de maneira apriorística em que existe uma estratégia independentista materializada em diversos atos simultâneos e por atores diferentes, mas coordenados.
Na realidade, essa estratégia única, sólida, coordenada, deixou de existir —se é que chegou a existir alguma vez— depois da declaração unilateral de independência de 10 de Outubro de 2017 e da sua imediata suspensão por Carles Puigdemont. Em seguida, o encarceramento dos agentes sociais e políticos e as gravíssimas acusações de rebelião e sedição, a saída para o exílio de várias das pessoas responsáveis daquela proclamação, desde o próprio Puigdemont a Anna Gabriel e a suspensão da Generalitat através do artigo 155 da constituição espanhol, colocaram uma parte dos esforços, cada vez mais grande, na denúncia da repressão e na argumentação de que existem, na Espanha, presos e presas políticas. O papel ridículo da justiça espanhola com as euroordens de detenção, a negativa doutros países a entregarem as políticas e políticos exilados e alguns outros pormenores como o dispositivo ilegal de seguimento colocado no carro de Carles Puigdemont foram notícia e acompanharam o processo catalão no último ano e meio, mas pouco mais tem havido no entanto além da reclamação de respeito aos direitos civis, que é necessária, mas não significou qualquer avanço em direção a uma declaração definitiva de ruptura. Desde começos de 2018, as esperanças de uma importante parte do independentismo estão postas em que o juízo contra os cargos políticos que possibilitaram o referendo de 1 de Outubro reative uma frente comum, mas o juízo está já nos seus prolegômenos e não parece que essa frente esteja pronta para agir.
O espaço partidário: uma reconversão
A imagem de um independentismo unificado a atacar Espanha, tal como vendida polos meios de Madrid e por meios galegos que apoiam o Estado é, portanto, essencialmente falsa. Não existe uma estratégia única, ou quando menos não existiu no último ano. E, sem dúvida, hoje tampouco existe qualquer cousa como um corpo unificado que, como nos finais de 2017, tenha em mente levar para a frente a ruptura e muito menos o processo constituinte que se deveria seguir.
Dentro do bloco independentista há diferentes forças e as correlações entre elas são móbiles, por mais que nos meios se insista em falar de «o independentismo» como um todo monolítico. A prova está nas diferentes tensões que têm enfrentado os diferentes partidos, em particular quando mais à direita, desde o referendo e sobretudo a partir de que o Estado lançasse a sua agenda repressiva judicial e política. Já no início do procés, a histórica CiU tinha perdido a pata de Unió Democràtica de Catalunya. Mas a reconversão não parou aí e ainda iria sofrer novas fraturas: a acidentada mutação de Convergència no PDeCAT, as reticências em relação à coalizão Junts pel Sí, as denúncias pola instrumentalização de Junts per Catalunya, etc. Tudo mostra uma decomposição do espaço político que na época do pujolismo tinha concentrado o poder sem muito rival para lhe fazer sombra. No futuro imediato, a apresentação de Crida Nacional per la República, prevista para Janeiro de 2019 e com aval de Puigdemont, terá como objeto superar as reticências nesse espectro político, mas falta por ver ainda como isso irá afectar outros agentes que têm ficado pelo caminho ou se têm desmarcado inteiramente do processo, e podem agora vir de novo à tona em posições abertamente contrárias, reforçando os grupos que aderiram, mas que têm cada vez menos certezas.
Algo semelhante, mesmo que sem troca de siglas, tem acontecido na outra organização maioritária: Esquerra. O peso da sua dirigência encarcerada joga um papel relevante e a insistência em permanecer aquém da linha da desobediência civil e dos «passa-montanhas» parece capaz de abrir fendas que, sem cindir o partido, também façam acordar contrapessoas internos ao setor que aposta mais claramente por ações à ofensiva.
Mas uma vez, o sorpasso das ruas
Nas semanas prévias à cita de 1 de Outubro, analistas e jornalistas de diferentes tendências especularam com que, mesmo que o referendo fosse impedido ou não se celebrasse, o independentismo não se iria deter aí. O argumento era que depois de anos da Generalitat a jogar com fogo, as “massas independentistas” eram “incontroláveis”. Aquele razoamento tinha uma derivada alarmista que se demonstrou infundada, sobretudo quando o 1 de Outubro a única violência a puseram as forças policiais espanholas enviadas para tratar de impedir as votações, mas também continha o reconhecimento de que lado com lado com os agentes partidários havia na Catalunha um novo ator popular que até então se tinha desprezado ou desvalorizado.
Como em Outubro de 2017, parece que, neste momento, o principal agente político na Catalunha não são os partidos, mas setores do povo muito implicados que estão a alargar as bases dos CDR e que estão dispostos a puxar da via anti-repressiva, mas entendendo-a como ferramenta para evidenciar que qualquer avanço em direitos civis e sociais apenas é possível com um Estado próprio plenamente soberano, à margem duns tribunais espanhóis completamente desacreditados e cuja independência só se argumenta hoje desde posições ideológicas afins. Esta é também a posição da CUP, que costuma ser apresentada como partido, mas que não é apenas um partido, e cujas bases participam largamente nos próprios CDR, que tem passado este ano a exercer uma forte oposição ao governo da Generalitat, ao que considera «autonomista» por ter deixado estacionadas as medidas à ofensiva para materializar a República, e que está a fazer um chamado a tomar o juízo contra os presos e presas políticas como revulsivo nesse mesmo sentido.
Como em Outubro de 2017, parece que, neste momento, o principal agente político na Catalunha não são os partidos, mas setores do povo muito implicados que estão a alargar as bases dos CDR e que estão dispostos a puxar da via anti-repressiva.
É verdade que a repressão judicial e política através da aplicação do artigo 155 da constituição espanhola por parte do Estado não tem paralisado o processo, que continua a avançar lentamente. Mas é evidente que conseguiu introduzir elementos de distorção que alguns setores que nunca quiseram o enfrentamento com a España ou que continuam a apostar no referendo pactuado estão a aproveitar para arrefecer os ânimos e concentrar as forças na exigência do respeito aos direitos civis e individuais. Cabe perguntar-se, então, onde é que está o avanço? Se não no parlamento, sim na maturação de uma alternativa nas ruas que emergiu para proteger o referendo, e que hoje está a ter uma centralidade indiscutida, capaz de obrigar de novo os partidos políticos a rumarem na mesma direção.
Precisamente com o juízo de pano de fundo, e, sobretudo, com esse empuxo nas ruas, nas últimas semanas têm transcendido uma série de reuniões de trabalho discretas entre JxCat, ERC, a CUP, Òmnium e a ANC que, segundo meios catalães, estão a discutir, por agora sem resultados, uma nova folha de rota. As alternativas continuam a ser, por enquanto, o diálogo com o Estado ou o reconhecimento de que Madrid nunca assumirá um referendo pactuado e que cumpre iniciar a via da desobediência civil e da internacionalização. Quim Torra e Pere Aragonès, de JxCat e ERC respetivamente, defendem a primeira, mas isso não significa que todo o PDeCAT e toda ERC estejam nessa posição. A CUP e a maioria de coletivos sociais pulam pola segunda. Está por ver se, nas próximas semanas, cristaliza uma nova unidade de ação entre as diferentes forças, que não são apenas as partidárias, e se o cenário judicial —que pode demorar anos a publicar as sentenças— ajuda a dissipar as dúvidas.
Oscar Valadares
Silheda, 1984. Analista internacional OSINT. Portavoz nacional de Mar de Lumes - Comité Galego de Solidariedade Internacionalista.
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