Um combate medieval

ENTREVISTA | Diniz Cabreira

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Carlos Alfredo Castromao | Compostela, 5 de novembro. Diniz Cabreira é designer gráfico e responsável do clube de artes marciais históricas “Arte do Combate”. Iniciou-se no Judo mas virou para o Aikido durante os seus estudos de Física. Após deixar a universidade dedicou dez anos a estudar as artes marciais do final da idade média, partindo de manuais manuscritos do século XIV. Tem ministrado seminários desta matéria para as federações galega e portuguesa. Faz parte do projeto AGEA Editora, referente mundial na recuperação de textos antigos de artes marciais, particularmente ibéricos. Recentemente vem de dar ao prelo o livro Há Uma Única Arte da Espada, tradução para o galego-português do manuscrito GNM HS 3227a, de 1389.

O que son as HEMA?

HEMA é a sigla para Artes Marciais Históricas Europeias. É um termo vago para um movimento global dedicado à recuperação de sistemas de luta dos que há documentação escrita. Envolve desde as lutas com espadas do final da idade média até sistemas de auto-defesa da inglaterra victoriana, o combate com sabre a cavalo das guerras napoleónicas, ou a esgrima com espada duma mão do renascimento e do barroco. Este movimento é um híbrido de pesquisa académica e prática desportiva: a metade do trabalho consiste em recuperar e analisar os textos originais, e a outra metade em colocar essas técnicas na prática —utilizando equipamento seguro como máscaras de esgrima, protecções especializadas, espadas sem gume nem ponta, etc.

Como xurde este projeto?

Há cinco anos eu estava a afundar no estudo da Kunst des Fechtens, que é uma das principais tradições marciais das que conservamos registo documental. É originária dos séculos XIV e XV, ainda que continua a ser praticada até o XVIII e, como podes supor pelo nome, trata-se duma arte de origem centro-europeu: o que na altura era chamado de Sacro Império Romano. Os textos desta matéria estão escritos em vários dialectos do que é denominado Mittelhochdeutsch, ou “alto alemão médio”: um precursor das línguas germânicas modernas. Existem traduções deles para o inglês que, como em todas as comunidades académicas de hoje, é a lingua franca nas artes marciais históricas. Porém, estas traduções são sempre interpretações. Traduttore, traditore, não é? Ao avançar no estudo eu notava que os autores estavam a incluir a sua própria visão do significado dos textos. Isto era particularmente notável ao comparar várias traduções do mesmo texto: por vezes os resultados eram mesmo divergentes, e no melhor dos casos introduziam sempre um viés. Na pesquisa da minha própria compreensão acabei por virar para o texto original. Negociei com o Germanische Nationalmuseum de Nüremberg uma cópia dele, e comecei a tomar as minhas próprias anotações.

“Não pretendo tanto trasladar a literalidade do original como a minha compreensão dele. Uma vez tinha as anotações, decidir converter o conjunto num livro era um passo lógico. Pensei que o meu estudantado podia beneficiar-se do resultado.”

Por qué decides traduzir este texto ao galego?

É que necessitava colocar por escrito o que tinha na cabeça ao ler o original. Inicialmente o projecto não estava tão focado na tradução como na compreensão. Mas —para mim, na mínima— compreender significa ré-escrever com as palavras próprias, e nesse processo surgiu assim esta tradução. Por isso insisto em que se trata duma tradução livre, interpretada. Não pretendo tanto trasladar a literalidade do original como a minha compreensão dele. Uma vez tinha as anotações, decidir converter o conjunto num livro era um passo lógico. Pensei que o meu estudantado podia beneficiar-se do resultado —eu estou a dar citas em aulas todo o tempo do texto original, e desta forma podem ter cópia escrita. E também acho que pode ser de interesse para outras pessoas na Galiza, em Portugal, no Brasil e noutras partes do mundo que estejam a estudar esta matéria.

Qual é a importancia do manuscrito para a prática e ensino da arte da espada? 

Bom, o 3227a é um dos textos mais antigos desta matéria. Não estamos certos da data de escrita, mas pudera remontar-se a 1389; como máximo, seria do primeiro quarto do século XV. Forma, ademais, um ramo senlheiro no corpus teórico da Kunst des Fechtens. Há outros três textos mais ou menos contemporâneos ou pode que um bocado posteriores: os códices LewDanzig e Ringeck. Estes três tiveram, por assim falar, “descendência” na forma de cópias e remixes do seu conteúdo teórico, que consiste fundamentalmente em aplicações específicas, concretas, de técnicas a situações dadas. Porém, o 3227a é um texto solitário, que não foi copiado em tratados posteriores, apesar de conter amplos ensaios acerca da arte de combate, das suas escolhas tácticas e motivações, da teoria subjacente, etc.

Quanto demoraste em fazer esta versom do texto e que dificuldades atopaste?

Foram uns cinco anos de trabalho irregular, aproveitando fins de semana e muitas horas mortas. Contar com seis traduções ao inglês facilitou alguns aspectos, mas complicou outros: quando uma passagem não era clara por vezes resultava clarificador ver as decisões tomadas por outras pessoas… mas outras vezes, quando os seis autores escolheram opções divergentes, apenas acrescentava complicação. Nestas situações era necessário procurar em vocabulários de alemão medieval variantes das palavras, ou pesquisar na literatura que conservamos frases feitas e expressões… Também ajudou muito a vigorosa comunidade internacional de pesquisa nestes temas. Há gente a publicar constantemente os seus achados, e isso sempre contribui novas visões.

Fotografías: Nuno Antunes e Sandra Nufi.

Quem era Liechtenauer e o que é a Zedel?

Johannes Liechtenauer foi um “mestre de armas”, um professor de artes marciais de finais do século XIV ou princípios do XV… talvez. O certo é que dele apenas sabemos o que é dito no 3227a: que “não inventou o que aqui está escrito, que já fora criado centenas de anos atrás, mas viajou e pesquisou por muitas terras, pois queria compreender e dominar a Arte na sua totalidade”. O que sabemos é que se trata duma figura referida com reverência por outros mestres de armas posteriores dos que sim temos registo biográfico nas crónicas das cidades nas que trabalharam, ou nos livros de contas dos nobres para os que exerceram, etc. 

“Sabemos que Liechtenauer, o autor, foi um mestre de armas referido com reverência por mestres posteriores”

Estes sucessores utilizam o nome de Liechtenauer para validar o seu conhecimento —um exemplo clássico de apelo à autoridade, muito comum no escolasticismo medieval. Mas bem pudera ser que Liechtenauer até nem existisse, e fosse apenas inventado para atribuir um autor à Zedel. Esta é um longo poema “de palavras secretas” que recolhe o coração da teoria da Kunst des Fechtens. Nele estão listados ataques e defesas, situações que se podem dar e as suas respostas, quando aplicar as técnicas…O texto da Zedel é indecifrável para quem não tenha formação já na Kunst des Fechtens. Trata-se, na realidade, duma ajuda mnemotécnica. Não é para aprender, mas para lembrar o aprendido. Não serviria de muito hoje em dia se não fosse porque, precisamente pelo seu carácter críptico, foi anotado e comentado extensivamente pelos sucessores de Liechtenauer. Estes escreveram extensas glossæ ao poema, e através delas temos instruções técnicas bastante específicas. É este comentário, ao final, o que nos permite praticar de novo espada em mão a Arte.

Qual vai ser o percurso desta publicação que acaba de sair do prelo?

Bom, venho de ministrar em Lisboa um seminário da Kunst des Fechtens para a federação portuguesa, e aproveitei para fazer uma pequena apresentação do livro. Porém, o lançamento oficial será este mês, faremos um ato em Compostela. Falaremos eu, o editor, e possivelmente alguma pessoa mais do mundo literário e das artes marciais. A partir destes momentos estará à venda on-line na página da editora. Como temos um público muito internacional, aguardo que além de se vender para a Galiza também tenha acolhimento em Portugal e no Brasil, como mínimo.

Quais som as fórmulas mágicas que contém este livro que mais che surpreenderam?

[Risos] Ainda que o meu livro traz só o texto relativo às artes marciais, o original é um Hausbuch, ou livro de notas. O autor recolheu nele quanto achou de interesse: receitas para o forjado do metal, fogos de artifício, medicina, astrologia… e também magia. Quis incluir algumas das receitas mágicas no final do livro porque achei engraçadas. Há uma que supostamente permite invocar 1000 cavaleiros fantasma no campo da batalha que dá para pensar: podendo fazer isso, para que estudar arte de combate nenhuma? Outras receitas são “para os pecados nocturnos”, ou para ganhar o favor do chefe, ou para seduzir alguém. Temas clássicos, vaia.

Ficaste baleiro depois deste projeto, ou já andas a argalhar algo novo?

Agora mesmo tenho que acabar de promover o livro, e tenho convites para dar um par de aulas em Portugal que ainda devo ver se posso atender. Também temos atrasada a publicação dum outro par de livros da AGEA Editora que não escrevi eu, mas que devo desenhar e diagramar. Isso somado às aulas semanais que ministro em Compostela e ao trabalho diário e a vida, não dá assim tanta margem! [Riso] Mas sim, algo tenho na cabeça. Para começar, deveria escrever vários artigos a continuar o livro. Na realidade, um projecto assim nunca está completo e sempre fica aberto a ré-interpretar aspectos. Também há material que devi suprimir dos antetextos para não fazer estes mais extensos que a matéria original, mas que merece mais consideração. Mais a meio prazo, deveria continuar o mesmo processo de tradução e interpretação com os outros três textos que já mencionei: Ringeck, Danzig e Lew. Os quatro juntos formam o coração da KdF, pelo que seria muito bom ter este material disponível na nossa língua, e traduzido e editado com um mesmo critério. Mas isto levará anos.

Podemos falar dalguma arte de combate galega com ou sem arma?

Certeza! Temos de facto um formato de luta desarmada tradicional que hoje é chamado Luta Tradicional Galega. Tem origem num híbrido de brinquedo, desporto e preparação para um conflito real, e há gente como o clube A Cambadela que está a trabalhar na sua modernização e recuperação. Há também uma muito interessante arte chamada de Jogo do Pau que está a ser recuperada.

Que era a luta do pau, da que se fala que havia tradição no Gerês, e da que contam os cronistas que mesmo algúm ano chegou a haver mortos?

Trata-se dum sistema de luta com varas —aproximadamente do chão até aos ombros— de origem minhoto que se estendeu para a Galiza e Portugal. Tinha uma utilidade a caminho entre a auto-defesa e a exibição. Não poucas vezes os jovens de diferentes vias resolviam os problemas “a vareadas”. E há documentada uma figura, muito engraçada, que chamavam o barredor de romarias: eram os moços que se colocavam no médio do campo da feira e berravam ‘A quem me de, dou-lhe um peso!’. Daí seguia uma série de lutas com apostas entre a concorrência. Os vizinhos do sul recolheram esta arte no século XIX para a converter na “esgrima nacional”, mas os textos mais antigos que os próprios portugueses têm afirmam que fora levada para Lisboa por mestres galegos que “eram os melhores que lá havia”.

“Os vizinhos do sul recolheram a luta do pau no século XIX para a converter na ‘esgrima nacional’, mas os textos mais antigos que os próprios portugueses têm afirmam que fora levada para Lisboa por mestres galegos”

Também distingue, a nível técnico, o jogo do pau “do Norte, também chamado galego por ser originário da Galiza” do modo de Trás-os-montes e do moderno estilo lisboeta. De modo que temos ampla documentação acerca das origens galegas. E, para além disto, há ainda memória nos nossos velhos da sua prática. A nível técnico, trata-se dum sistema de combate muito dinâmico, onde o jogo de pés e trabalho da inércia da vara são fundamentais. Tem como característica a destacar que treina bastante bem a luta contra vários oponentes à vez, para situações de auto-defesa.

Acostumas andar armado com espada?

[Riso] Não, logicamente. Para começar, é potencialmente ilegal, digo potencialmente porque na realidade há um vazio legal aí, mas não vamos entrar nisso. E em segundo lugar, levar uma espada na cinta é incómodo. Ambos motivos, por certo, sucediam também na idade média: a gente não andava com espada na cinta todo o tempo, e em muitos lugares não estava permitido. Cutelos e adagas, é certo, já era outro cantar: eram muitas vezes consideradas ferramentas, ou peças da vestimenta. Em todo caso, o motivo último é que não faz sentido ir armado de forma nenhuma na vida diária. Vivemos numa sociedade muito segura, e relativamente tranquila.

Que arma é melhor, a espada ou o livro?

Pois se sou realista, devo dizer que a espada, na mínima se falamos num confronto literal, directo. O próprio 3227a diz “a prática é superior à teoria, porque a teoria sem prática é inútil, mas a prática sem teoria pode chegar a ter certo sucesso”. Isto é um chamado, num livro dedicado à teoria da arte do combate, para sermos realistas e não nos recriar em excesso no mundo das ideias. Mas num sentido mais estratégico, um livro pode ser uma arma poderosa. Os livros carregam ideias, são fáceis de esconder e de fazer permanecer no tempo, e as suas ideias podem germinar em quanto encontrem solo fértil. Os livros recolhem também a crónica do que sucedeu, e podem mesmo até mudar o nosso entendimento do passado, pelo que têm o poder de desfazer feitos. Suponho que podemos dizer que se as espadas ganham batalhas, são os livros os que ganham as guerras.

Qualquera outra cousa que ficara no tinteiro?

Apenas animar à gente a explorar este fascinante mundo. Já falamos muito da parte académica, de pesquisa —que, devo confessar, é a minha parte preferida— mas há uma outra metade prática que dá para fazer exercício, descobrir uma prática nova e também socializar. Para o leitorado que viva em Compostela, as nossas portas da Arte do Combate estão abertas. E para quem viver no resto da Galiza, recomendo visitar o site web da federação galega AGEA, que tem uma listagem das escolas que no nosso pais existem. Para quem goste do aspecto mais teórico, recomendo visitar o site web da AGEA Editora. E, logicamente, acompanhar-nos na vindoura apresentação do livro o 15 de novembro às 19:30 horas, na Livraria Couceiro em Compostela.

O entrevistado

Diniz Cabreira

Diniz Cabreira

Vigo, 1982. Estudou física e informática, mas trabalha como designer gráfico. Faz responsável do seu interesse nestas cousas, a seus pais, que o criaram com contos do Rei Arthur e histórias de cavalaria.

Treinou Judo e Aikido antes de conhecer as artes marciais históricas europeias. Junto com vários amigos fundou a Gallaecia en Armis em 2008, que cresceu até se converter no maior grupo da Galiza neste eido. Lá ministrou aulas de espada longa até 2017, quando passa a dirigir a escola Arte de Combate.

Outras entrevistas

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Diniz Cabreira

Diniz Cabreira

Vigo, 1982. Estudou física e informática, mas trabalha como designer gráfico. Faz responsável do seu interesse nestas cousas, a seus pais, que o criaram com contos do Rei Arthur e histórias de cavalaria.

Treinou Judo e Aikido antes de conhecer as artes marciais históricas europeias. Junto com vários amigos fundou a Gallaecia en Armis em 2008, que cresceu até se converter no maior grupo da Galiza neste eido. Lá ministrou aulas de espada longa até 2017, quando passa a dirigir a escola Arte de Combate.

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