A Carriça, rainha das aves
Bursário de figuras para educação de príncipes celtas (VI)
Para o João Aveledo, bichólogo.
Mais vale manha, que força.
No folclore atlântico e no espaço continental europeu existe uma tradição de fábulas e contos em que se coloca a pícara carriça como rainha das aves. Já em Plínio e antes em Aristóteles podemos rastrear a base do conto, mas atribuindo as proezas e o título real à estrelinha de cabeça listada. Provavelmente, o conto é muito mais antigo e oriental, adaptado por gregos e latinos à ave pelas singulares penas douradas da cabeça.
O interessante é que a primeira parte do conto, a prova do voo de altura, talvez e mais uma vez popularizado de fonte culta e literária, percorre dos clássicos até os irmãos Grimm, passando pelas recadádivas do folclore basco, provençal, ou italiano, adquirindo porém no folclore das ilhas britânicas um rico desenvolvimento e variação particular.
A questão é como a pequena carriça pôde chegar a ser por inteligência a rainha das aves e como hoje ainda as aves e outros bichinhos apelam a ela na procura de conselho.
Os feitos aconteceram no princípio dos tempos, quando após a guerra das aves contra os animais terrestres, os voadores decidiram escolher um rei. Para isso e depois de uma assembleia, decidiram que seria rei quem mais alto fosse capaz de voar.
Daquela escolheram um campeão por cada raça. Abriram as às e largaram a voar. Subiam alto, mais alto e conforme subiam, os pequenos pássaros iam abandonando, depois os aquáticos cediam, mais tarde os mouchos, os corvos, os falcões, e as aves migratórias e marinhas. Afinal só ficaram no céu as grandes águias, e uma por uma foram chegando os seus limites, até só ficar a águia real.
Quando a grande águia, já sóa, não puído mais começou, orgulhosa, o descenso. Nesse momento ouviu com supressa a voz da pequena carriça que acima dela berrava. – Eu sou a rainha!!!, eu sou a rainha…!!!
Já em terra o conselho das aves não podia acreditar. A questão é que a pequena carriça viajara no lombo da águia e voara no último momento. Após um grande debate com as grandes aves com vontade de despedaçar as pequenas, os mouchos propuseram outra prova para confirmar.
Esta outra prova seria quem picasse até o mais baixo. E aconteceu que todas as grandes rapazes picavam com precisão e velocidade até roçar a terra e remontavam voo. Falcões e águias superavam todas. E chegou o turno da carriça, quem picou com habilidade, tanta que despareceu num tobo de coelhos na terra, aparecendo por outro lado no momento e chiando: sou a Rainha!!! sou a Rainha!!!
Aí foi outra vez o escândalo. Porém e pela segunda vez nada nas regras tirava a razão à carriça. E foi-lhe concedido o título real. Isso sim, águias, mouchos e falcões juraram-lhe ódio eterno, por isso a carriça aninha em terra e em buracos nos matos espinhentos, aí faz corte e aconselha sabiamente os animais que demandam a sua opinião.
“Isso sim, águias, mouchos e falcões juraram-lhe ódio eterno, por isso a carriça aninha em terra e em buracos nos matos espinhentos, aí faz corte e aconselha sabiamente os animais que demandam a sua opinião.”
É interessante, dentro da cultura celta, os elementos da história quando os combinamos com os elementos que conhecemos a respeito da interpretação das leis, do valor da formulação dos legalismos, dos condicionantes (geasa, pactos, rolls, clã, profecias, magia) que definem –como elementos a aprender e respeitar– as histórias, episódios e desenlaces tantas vezes trágicos quanto coerentes das histórias dos deuses, dos heróis, das grandes figuras lendárias.
Destacam-se as coerências trágicas, o levar as palavras dadas até as últimas consequências, e sempre dentro da complexidade (social) das hierarquias ou das precedências; o mesmo rege na consecução dos troféus, das parelhas e aliados, no ganhar armas e itens poderosos, o suceder em provas, sortes, competições, com habilidades, informações, mas sempre cumprindo estritamente as formulas acordadas nos pactos, ou nas magias, superstições e tabus da tribo, que definem os pontos fracos de amigos, inimigos, heróis, deuses e monstros.
E também destaca o respeito pelo saber dizer (ou pelo saber calar) e o saber fazer, a admiração pela inteligência, as muitas habilidades, a astúcia e a sabedoria mais que pela força bruta ou a capacidade militar. Lugh, Cuchulain, Finn, a rainha Medb, Macha, Mael Duinn, Cu-roi, como Gawain, Hagen ou Ulisses, tem um pontinho de astúcia, de tricksters e enganadores, à vez que de habilidosos construtores e experientes guerreiros. Nesta linha estabelece também ligação com as populares histórias do raposo Renart.
Astúcia, renarteria, inteligência, sabedoria, conhecimento das leis, costumes, habilidades de amigos e inimigos, frialdade, bem dizer e suceder, habilidades múltiplas que podem se tomar por magia, eis –parece o ideal céltico e o summum do prestígio social.
Valladolid, 14 de fevereiro.
Ernesto Vazquez Souza
Crunha, 1970. Doutor em Filologia hispânica (Galego-português) pela UdC. Pesquisou e publicou algum trabalho sobre história, contexto político e cultural do livro galego das primeiras décadas do século XX, atualmente trabalha como Bibliotecário na UVa; é sócio da Associaçom Galega da Língua e membro da Academia Galega da Língua Portuguesa.
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