"A humanidade acaba de receber o que pode ser considerado como o maior alerta da História"

ENTREVISTA | David Graeber

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Lenart J. Kučić (co-editor de Disenz) | Tradução: Gabriela Leite e Victoria Moawad para ‘Outras Palavras’ | primavera 2020. Era uma agradável tarde de primavera londrina, e David Graeber, professor de antropologia da London School of Economics, estava sentado em um terraço. Nossa conversa aconteceu por videochamada, devido às restrições de deslocamento provocadas pela pandemia de covid19. Não falamos apenas do novo vírus e suas consequências para a sociedade, a política e a economia, mas também aproveitamos a oportunidade excepcional para conversar sobre sua obra já publicada: de Fragmentos de uma antropologia anarquista a Em dívida ou A utopia das normas e, finalmente, de seu livro mais recente: Empregos de merda: uma teoria.

O professor Graeber se apresenta como antropólogo e anarquista. Mas não gosta de ser chamado de “antropólogo anarquista”, já que essa disciplina não existe — o que nos explica durante o curso da entrevista. Graeber é também ativista: fez parte de muitos movimentos sociais e protestos durante as últimas décadas. Atribui-se a ele frequentemente o slogan não-oficial do Occupy Wall Street: Somos os 99%. Mas ele insiste que o slogan, como todos os demais aspectos do movimento, foi fruto de esforço coletivo.

É possível que governos democráticos utilizem essa pandemia para impor medidas autoritárias sobre a cidadania? Por que não vimos uma greve dos profissionais sanitários e de cuidados para exigir melhores salários durante a pandemia? O que aconteceria se Wall Street fechasse por alguns meses? Por que os carros voadores só existem como efeito especial nos filmes de ficção científica? Como podemos usar os princípios anarquistas para desemaranhar o caos da crise? Por que não queremos depender dos exércitos chineses e estadunidenses para defender o planeta?

E, finalmente, como converter um discurso de bêbado em um best-seller?

Temos a impressão de que, durante a pandemia, todo mundo fala o mesmo idioma: de governos progressistas e conservadores até o Estado Islâmico e os anarquistas. A mensagem é idêntica: fique em casa, lave as mãos, evite aglomerações… Minha impressão é de que a grande maioria seguiu as recomendações oficiais sem mais reclamações. Não vimos nada parecido em muito tempo. O que aconteceu?

Bom, é que tem muita gente que não está suficientemente louca a ponto de ignorar recomendações médicas em plena pandemia. Isso me faz pensar em Henri de Saint-Simon, cientista político francês do século XIX. É possível que Saint-Simon tenha sido o primeiro a propor a extinção do Estado. Argumentava que, com o tempo, um Estado reformado sobre critérios científicos não teria que depender da coerção, e que, então, não seria um Estado tal qual compreendemos hoje em dia, com seu monopólio da violência.

Por quê?

Segundo ele, pelo mesmo motivo pelo qual o médico não tem que te ameaçar para que você tome os remédios que foram receitados. As pessoas têm consciência de que o médico tem certos conhecimentos dos quais elas precisam, e assumem que está atuando em seu melhor interesse. Saint-Simon argumentava que em um Estado racional e fundamentado em princípios científicos, a cidadania atuaria da mesma maneira, e a imposição coercitiva se converteria em algo do passado. Pode ser que haja alguns loucos que não queiram seguir a receita médica, mas seriam uma minoria sem importância. Nem preciso dizer que era uma abordagem extremamente otimista e ingênua. De fato, Marx desdenhava de Saint-Simon e sua linhagem, descrevendo-os como “socialistas utópicos”. Mas há muitos setores do governo que, no dia de hoje, pretendem funcionar segundo critérios puramente científicos e racionais. De fato, poderia se argumentar que nem sequer formam parte do governo, devido a sua própria natureza. Essa é uma conversa que tínhamos constantemente no movimento estudantil do Reino Unido, durante a onda de protestos de 2010. Éramos fundamentalmente anarquistas, mas apoiávamos a saúde e a educação pública. Parece hipócrita, não? Para nós, não parecia, mas não parávamos de discutir a respeito. Talvez o problema seja que os Estados são incapazes de conceber instituições públicas —com isso me refiro a instituições universais e sem fins lucrativos— que não estejam sob seu controle. Isso não supõe que tais instituições tenham o mesmo humor que os exércitos, ou o sistema carcerário, que são artefatos exclusivamente estadistas.

De fato, Foucault diria que a autoridade capaz de impor-se sem recorrer à violência é a mais assustadora.

Creio que, nesse aspecto, há uma má interpretação arraigada de Foucault. Assume-se que todo discurso é uma expressão do poder, e que toda expressão de poder é fundamentalmente violenta e censurável. É correto que, em algumas vezes, parece ser mesmo isso que você está dizendo. Mas se entrássemos em detalhes, Foucault diria que não, de maneira alguma. Ostentar o conhecimento como expressão endêmica do poder é uma ideia muito atrativa para os acadêmicos, visto que têm muito do primeiro e pouco do segundo. Então não é de se estranhar que lhes pareça tão atrativo. Já Foucault tinha outras preocupações imediatas (lhe diagnosticaram como homossexual em sua juventude e ele queria entender como seus desejos mais íntimos podiam ser considerados uma patologia). Ele dedicou sua vida a tentar compreender essa questão. Grande parte da esquerda acadêmica se esquece que esses diagnósticos não são meras abstrações, mas se impunham mediante procedimentos legais ou ameaças de violência física, ainda que o próprio médico não esteja literalmente apontando uma pistola. Existe uma interpretação vulgar de Foucault que pretende evitar a violência implícita que está por trás de todas as instituições que ele descreve. No fim das contas, o panóptico era um cárcere. Em geral, se você se sente observado, o normal é que vá para o outro lado. Embora seja verdade que as coisas pioraram bastante desde a época de Foucault. Eram tempos sem vigilantes armados em escolas e hospitais. As coisas mudaram. Durante a pandemia, vimos governos de todo o mundo impondo medidas que, no início do ano, teriam sido inimagináveis em sociedades democráticas, tudo sob o guarda-chuva da saúde pública. Na Eslovênia, por exemplo, as pessoas recebem uma multa ao se manifestarem contra as medidas governamentais. Não por causa da manifestação em si, isso seria antidemocrático, mas por violar as leis de doenças infecciosas. Assim, os únicos grupos de pessoas com liberdade para se movimentarem são a polícia, o exército e os políticos. Não me surpreende. Você aprende muito sobre seu governo pela forma com é tratado o direito de reunião, seja por razões políticas ou de qualquer outro tipo.

A que você se refere, exatamente?

Normalmente, nas democracias liberais, a justificativa subjacentes ao conjunto de suas estruturas legais geralmente tem relação com noções de “liberdade”. A Declaração de Direitos dos Estados Unidos começa falando da liberdade: de expressão, de imprensa e de reunião. Na prática, quando esse direito de assembleia se exerce para protestar — que é a própria essência da identidade estadunidense — se percebe como menos legítimo o direito de reunião de gente que quer vender algo. Quando você diz isso, o grosso da classe média norte-americana não acredita. Não tanto no caso dos pobres, que já dão como fato que as regras são injustas. Mas, ao fim, dirão: “claro que há direito de reunião, desde que seja solicitada uma permissão. Que mal há nisso?” E há de se contestar: “certo, mas se antes de poder se expressar for preciso pedir permissão à polícia, isso não é liberdade de expressão. Se temos que pedir permissão antes de publicar algo, isso não é liberdade de imprensa”. Dirão: “Mas são coisas diferentes! É preciso pensar no tráfego, não pode se manifestar porque sim, tem que levar em conta o direito de ir e vir dos outros”. Isso me soa muito cômico porque, pelo que eu saiba, o direito a um trânsito fluido não é reconhecido pela Constituição. É algo que aprendemos durante o Occupy. Depois do desmonte forçado do acampamento, ficamos chocados com a grande quantidade de norte-americanos de classe média que ignoraram sua preciosa “Declaração de Direitos”, que está no papel. A mesma “Declaração” que transmitem com orgulho a seus filhos…

Você queria ocupar um espaço público?

Qualquer espaço. Quando nos chutaram do Zuccotti Park, tentamos montar outro acampamento porque… bem, era fundamental que as pessoas soubessem onde estávamos. Isso foi um dos pontos-chaves da primeira ocupação: qualquer nova-iorquino que quisesse envolver-se sabia automaticamente onde ir para pôr a mão na massa. No início, tínhamos a intenção de ir a um lote enorme que há perto de Wall Street. Era propriedade da Igreja episcopal dos Estados Unidos, que inicialmente nos deu luz verde. Mas devido a pressões no seio da hierarquia eclesiástica, acabaram retirando seu apoio. Apesar disso, vários bispos lideraram uma manifestação com a intenção de ocupar o terreno. Os policiais nos espancaram e a imprensa se negou a mostrar as imagens dos sacerdotes: só mostraram os manifestantes mascarados, a fim de caracterizar-nos como gente violenta e ameaçadora. Depois ocupamos um parque que ficava aberto 24 horas e, imediatamente, mudaram as regras do parque. Depois obtivemos uma vitória judicial graças a uma brecha que nos garantia o direito a dormir na calçada —desde que só ocupássemos metade da superfície. Ato contínuo, a prefeitura aprovou uma lei declarando Manhattan uma “zona de emergência”, onde as decisões judiciais não são aplicáveis. Nesse ponto, decidimos ocupar as escadas do edifício onde se assinou a Declaração de Direitos (que, por certo, fica bem próxima de Wall Street), já que não estava sob jurisdição municipal. Em um piscar de olhos, estávamos cercados pela SWAT e, depois de alguns dias, já encontraram uma maneira de expulsar-nos. Fizemos o impossível para estabelecer alternativas legais, mas o Estado pisoteou os mesmos princípios legais que inculcam às crianças nas escolas, os mesmos princípios que, supõe-se, devem fazer-lhes sentirem-se orgulhosos de ser norte-americanos. E os meios de comunicação se mantiveram em silêncio.

“Wall Street existe para Wall Street, e para que os ricos sigam sendo ricos. Não é útil para mais ninguém. Além do mais pode ser muito prejudicial para todos, daí o debate sobre a necessidade de fechá-lo.”

Mas o que você pode ocupar, quando está de quarentena em casa?

Sempre há algo que dá pra fazer. O Anonymous demonstrou que é possível usar as redes para fazer protestos relevantes e impactantes. E por todo o planeta há gente criando novas maneiras de protestar de casa. Isso dito, as quarentenas não serão permanentes. Devemos recordar que existia um mundo antes das vacinas, onde as pessoas tinham formas de defender-se da cólera, da febre amarela ou da gripe: rastreavam municiosamente os vetores de contágio, os isolavam e os punham em quarentena. Prestavam atenção à higiene e ao distanciamento social, e restringiam certas atividades comerciais. Tudo isso era rotineiro na época vitoriana. Meu amigo John Summers investigou a estratégia usada pela pioneira do trabalho social, Jane Addams, frente a este tipo de ameaças em Hull House, a casa de acolhimento modelo do movimento settlement, que fundou em 1889. Sua conclusão: as classes médias haviam se esquecido de coisas que, no passado, eram conhecidas por todos, da sabedoria popular. E, claro, nada disso foi capaz de impedir a articulação de movimentos sociais, como demonstra o caso Hull House, que é um exemplo da idade de ouro do anarquismo, no seio do movimento trabalhista. Seguimos em uma fase reativa e de pânico, e estamos apenas começando a encontrar formas de enfrentar o problema. É muito cedo para pensar que o vírus vai aniquilar nossas relações sociais.

E as relações econômicas?

É facinante. Os governos de todo o mundo mantiveram durante anos e anos uma posição de que era totalmente impossível fazer justamente o que fizeram durante a pandemia: deter quase toda atividade econômica, fechar as fronteiras e declarar um estado de emergência global. Faz só alguns meses que se assumia que um declive de 1% no PIB seria uma hecatombe, que acabaríamos esmagados pelo equivalente econômico do Godzilla.

E isso não aconteceu…

Não, e aconteceu outra coisa. Todo mundo ficou em casa e a atividade econômica se reduziu em um terço. É uma loucura —caberia esperar que, com todo o mundo imobilizado e em casa, a economia colapsaria em cerca de 80%, não só um terço, não acha? Isso nos faz pensar: o que eles estão medindo, exatamente? E o que é uma “economia”? Que é o “trabalho”? Creio que a pandemia nos ajuda a ver essas coisas com mais clareza.

Com mais clareza?

Para começar, pudemos distinguir quais trabalhos são realmente essenciais, e quais são totalmente desnecessários. Mas também ficou claro o verdadeiro o papel das instituições. Os evangelizadores do capitalismo sempre argumentaram que o sistema financeiro global representa uma versão melhorada e de livre mercado da economia planificada. Como um plano quinquenal, pois determina a alocação de recursos e investimentos para otimizar a produção. Tudo para garantir que as pessoas do futuro vejam suas necessidades atendidas, e que haja prosperidade e bem-estar a longo prazo. Mas é uma promessa vazia. Quando falou-se de fechar Wall Street para prevenir outra catástrofe econômica como a de 2008, não se levantou em nenhum momento que uma interrupção de um mês ou mais poderia ter efeitos negativos reais. Wall Street existe para Wall Street, e para que os ricos sigam sendo ricos. Não é útil para mais ninguém. Além do mais pode ser muito prejudicial para todos, daí o debate sobre a necessidade de fechá-lo. A noção de um mercado livre e autorregulado é um mito. Sempre esteve regulado pelo Estado. Quando se discute sobre regulação ou desregulação, a chave é perguntar: em benefício de quem? Por isso, creio que as pessoas estão pensando seriamente no modo como nos tem governado nas últimas décadas.

David Graeber. @Disenz

Qual tipo de Estado irá surgir depois da pandemia? Para alguns, o socialismo pode ter uma segunda chance, como vemos através da nacionalização do sistema ferroviário no Reino Unido ou dos hospitais na Espanha. Outros temem que o Estado se torne mais autoritário, como aconteceu na Hungria. Há também esperanças de que o Estado forte poderia tornar-se emancipatório: regular indústrias que tornaram-se muito poderosas, colocar as pessoas acima dos lucros…

Bem, primeiramente, quando nos perguntamos “quem se mostrou mais eficaz ao lidar com a pandemia”, acho que devemos ter muito cuidado para não cair em falsas dicotomias: autoritário versus democrático, socialista versus capitalista e assim por diante. Não há evidências de que os Estados autoritários lidaram melhor. Obviamente a China parece desafiar esse parâmetro, e isso ecoa com uma certa percepção, particularmente comum nos países do Sul nas últimas décadas, de que ela representa a única alternativa viável ao tipo de modelo neoliberal promovido por instituições como o FMI e o Banco Mundial. Claro, é verdade que a China não seguiu a prescrição neoliberal. Eles se recusaram a liberalizar as finanças, por exemplo, e essa combinação de crédito fácil “corrompido” para a construção civil e assim por diante foi implementada na Índia, na Turquia e em muitos lugares da América Latina, como única maneira comprovada de fazer um país pobre tornar-se relativamente rico. Mas a ideia de que isso só foi possível porque o governo Chinês forçou as pessoas a sacrificarem liberdades sociais e políticas, é completamente infundada —não há razão nenhuma para acreditar que um deriva necessariamente do outro.

Mas por que então a China, a Coréia do Sul e Singapura são frequentemente apresentados como modelos a serem seguidos? Eles não têm os melhores resultados no combate à pandemia? Isso não está de alguma maneira relacionado à disciplina social?

Recentemente, li um estudo muito interessante comparando como regimes autoritários e não autoritários lidaram com a pandemia. Em linhas gerais, os autores concluíram que o autoritarismo era irrelevante enquanto fator. O importante era a crença das pessoas nos pronunciamentos do governo: o quanto eles confiavam em instituições públicas, na mídia e na comunidade científica. Não há relação sistemática entre o que está sendo chamado de “democracia” e esse tipo de confiança nas instituições. Aqui no Reino Unido temos uma das mais antigas democracias parlamentares do mundo, mas os políticos e a imprensa nos mentem tão sistematicamente, e de forma tão flagrante, que temos a menor taxa de confiança na mídia da Europa —seguidos pela Itália, e da Espanha, se me lembro bem. Nos Estados Unidos, a direita encontrou um jeito de tirar proveito dessa desconfiança justificável. Tudo é fake news. Estamos em um labirinto de espelhos. Melhor votar no cara (Donald Trump, Boris Johnson) que pelo menos é honesto suficiente para admitir que está mentindo; então você pode tornar-se um cúmplice, efetivamente, pois já que o mundo é feito de golpistas e vítimas, pelo menos você estará no time vencedor. Mas há algo mais profundo. Acho que do que realmente precisamos é de uma análise adequada do que é chamado de “centrismo” que é, de diversas maneiras, uma ideologia surpreendentemente perversa.

Centrismo?

O que pessoas de classe média —basicamente, membros da classe profissional-gerencial, que estão no âmago do centrismo— queriam dizer nos anos 1980 e 90, quando começaram a descrever-se como “liberais no estilo de vida, conservadores fiscais”? Isso significa que aceitaram uma ordem social na qual a esquerda moderada ficou a cargo da produção de pessoas, como acontecia, dirigindo os hospitais e as faculdades, enquanto a direita moderada estaria a cargo da produção de óleo, roupas e estradas. Então, assim que os movimentos sociais de esquerda atacam CEOs e acordos comerciais, movimentos sociais de direita atacam a autoridade das pessoas responsáveis pelo sistema educacional ou de saúde: professores e cientistas. Pense no criacionismo, aquecimento global ou aborto. Mas, como um gramsciano poderia dizer, é uma guerra de posição sem esperanças, nenhum lado irá vencer; a direita radical não está mais propensa a colocar igrejas evangélicas a cargo da reprodução social do que a esquerda radical está de transformar a Bechtel, Microsoft ou Monsanto em um coletivo autogestionado. O que a direita radical pode fazer é minar a confiança em especialistas. E claro, quanto mais eles têm acesso ao poder, mais conseguem fazê-lo, colocando incompetentes em posições de autoridade. Então a coisa toda alimenta a si própria. O resultado é um labirinto de espelhos infinito, onde tudo é ou pode ser mentira. Esses são os lugares que agora estão empilhando corpos. Porque eles foram para mais além da fantasia de Saint Simon. E você não pode culpar as pessoas por suspeitarem quando se tem um país como o Reino Unido, onde não deveríamos saber o nome dos cientistas aconselhando o governo a respeito do que fazer em uma crise médica. Mas de algum jeito, nós sabemos que dois dos membros no conselho são propagandistas do partido conservador sem nenhum treinamento científico. É quase como se eles quisessem mostrar que não são confiáveis.

“As pessoas estão aprendendo o quanto elas mesmas são capazes de fazer, independentemente de autoridades hierárquicas ao estilo militar. Em emergências, uma forma bruta e pronta de comunismo se afirma: de cada um conforme suas habilidades; para cada um conforme suas necessidades. Eles o fazem por mera eficiência: é a única coisa que realmente funciona.”

E se governos que não são confiáveis também tornarem-se mais autoritários…?

A ideia é que é algo que se autoalimenta. Há um paradoxo. As pessoas confundem políticas antiautoritárias com oposição a qualquer tipo de autoridade intelectual, e até mesmo a qualquer noção de verdade, justiça e mesmo de realidade física. Como se insistir em qualquer forma de verdade fosse equivalente ao fascismo. Mas, claro, se não há verdade, por que o fascismo seria sequer um problema? Quais são suas bases para contestar o fascismo, para além do gosto pessoal, o que não quer dizer nada se outras pessoas gostarem dele. Bem, esse tipo de relativismo absoluto agora está se dissipando na esquerda, ao mesmo tempo em que está sendo aderido agressivamente pela direita. Mas se for esse o caso, o autoritarismo —pelo menos a variável populista— acaba de sofrer grandes danos. Trata-se mesmo do que algumas pessoas estão dizendo, de um culto de morte, de uma forma de suicídio em massa. Entretanto, por essa mesma razão, não acho que deveríamos estar nos limitando a debater qual será natureza do futuro governo —se tornará mais autoritário, socialista, nacionalista, emancipatório? O que é impressionante é esse grau de auto-organização das pessoas, como nunca visto. A primeira coisa que aconteceu no Reino Unido, quando a pandemia começou, foi que cada bairro começou a estabelecer seu próprio grupo de ajuda mútua identificando pessoas vulneráveis: indivíduos sem familiares ou assistência, pessoas idosas… Eles são chamados assim: grupos de “ajuda mútua”, usando a antiga expressão anarquista. Somente em Londres, há centenas desses grupos.

Isso prova aquele antigo ditado que diz que todo mundo vira socialista —ou anarquista— durante a crise?

No meu bairro, e eu moro bem perto da Grenfell Tower, as pessoas estão cientes de que o governo é basicamente inútil em tempos de crise. Quando houve o incêndio há dois anos atrás, o governo não foi capaz de dar conta. É de se imaginar que o governo do país com a quinta maior economia do mundo não teria tanta dificuldade em encontrar moradia para algumas centenas de sobreviventes. Mas, na verdade, grupos de igreja e comunidades de ocupações autônomas tiveram que fazer tudo sozinhos.

Então apesar da percepção comum acreditar que o anarquismo nos levaria da ordem ao caos, ele pode na verdade transformar o caos em ordem?

Sempre acho um pouco divertido como as pessoas sempre dizem “meu deus, não podemos acabar com a polícia, porque se acabarmos com a polícia, todo mundo vai começar a se matar!” Repare como ninguém nunca diz “Eu começaria a matar pessoas”. “Humm, não há polícia? Acho que vou comprar uma arma e atirar em alguém.” Todos assumem que será o outro. Enquanto antropólogo, sei o que acontece quando a polícia desaparece. Eu vivi em um lugar na parte rural de Madagascar onde a polícia tinha, de fato, desaparecido há alguns anos antes da minha chegada. Não fazia praticamente nenhuma diferença. Bem, os crimes de propriedade aumentaram. Se as pessoas fossem muito ricas, elas eram furtadas ocasionalmente. Os assassinatos, se algo, diminuíram. Quando a polícia some em uma grande cidade, onde as diferenças de propriedade são muito mais extremas, os arrombamentos com certeza aumentam, mas os crimes violentos não são afetados. Mas no que diz respeito à organização —bem, o que temos que nos perguntar é por que achamos necessário bater nas pessoas, ou atirar nelas, ou enclausurá-las em uma sala imunda durante anos, para assim manter alguma forma de organização. Pessoas que realmente pensam assim não acreditam muito em organização, não é?

“Os lugares mais próximos do anarquismo que conheço não se saíram mal durante a pandemia. Penso nas comunidades zapatistas no México e em Rojava, a região amplamente curda no nordeste da Síria.”

Como os anarquistas lidariam com a pandemia?

Acho que nesse momento as pessoas estão aprendendo o quanto elas mesmas são capazes de fazer, independentemente de autoridades hierárquicas ao estilo militar. Em emergências, uma forma bruta e pronta de comunismo se afirma: de cada um conforme suas habilidades; para cada um conforme suas necessidades. Eles o fazem por mera eficiência: é a única coisa que realmente funciona. Mas é claro que o comunismo de crise tende a ser o exato oposto do autoritarismo socialista hierárquico. Sistemas de comando e hierarquia, como sistemas de câmbio, tornam-se um luxo a que as pessoas não podem se permitir — mesmo que frequentemente sejam restaurados na segunda fase da crise, quando as coisas começam a ficar mais fáceis. Na primeira fase, é mais como Saint-Simon e menos foucaultiano —a única autoridade que as pessoas reconhecem é aquela realmente baseada em algum tipo de conhecimento especialista, poucas pessoas são capazes de discutir com um médico tentando curar sua perna quebrada. As comunidades revolucionárias mais bem-sucedidas que conheço equilibram ambas as fases. Tentam disseminar o máximo de conhecimento possível mas, por essa mesma razão, há confiança em pessoas que possuem conhecimento especializado. Os lugares mais próximos do anarquismo que conheço não se saíram mal durante a pandemia. Penso nas comunidades zapatistas no México e em Rojava, a região amplamente curda no nordeste da Síria. Todas são anti-Estado e profundamente influenciados pelo anarquismo. Reagiram imediatamente à pandemia e deram início a uma mobilização comunitária completa, fechando escolas, criando equipamentos de proteção, melhorando o saneamento… Até agora, Rojava está se saindo bem, ainda que o governo turco esteja tentando fazer um ataque de germes contra eles, ao enviar intencionalmente refugiados infectados para lá. Esses exemplos mostram que princípios anarquistas podem ser usados para coordenar eficientemente profissionais da saúde.

Todavia, os governos estão tentando seriamente levar os créditos pelo combate à pandemia. O presidente americano Donald Trump chegou ao ponto de assinar cheques de próprio punho, sugerindo ter sido o principal responsável por dar dinheiro aos cidadãos. Não está sozinho nessa. Muitos governos tentam passar a impressão de que estão distribuindo recursos para nos ajudar a sobreviver à crise.

É difícil falar sobre como o sistema financeiro realmente funciona, pois está cercado por camadas e camadas de erros e mistificação. Para começar, há a retórica de “buscar” dinheiro para ajudar a economia e os cidadãos. Dinheiro não é um bem limitado que precisa ser encontrado, escavado ou produzido. Ele está literalmente sendo criado do nada. Trump não está dando algo que ele já tem. Está produzindo dinheiro ao distribuí-lo. Mas essa é apenas uma das muitas falsas premissas que o sistema sustenta. Aos olhos das classes dirigentes, tais mistificações são extremamente importantes de se manter, agora que as justificativas tradicionais para a existência do capitalismo se dissolveram quase todas.

Quais são essas mistificações?

Bem, havia três principais. Primeiro, as pessoas costumavam dizer “ok, claro, o capitalismo cria desigualdade extrema e todos os tipos de injustiças óbvias. Mas vale a pena, porque até as pessoas mais pobres sabem que seus filhos vão se sair melhor do que elas.” O segundo argumento era tecnológico: que o capitalismo sempre conduziria a uma rápida mudança científica. Nós costumávamos acreditar que nossas vidas iriam se transformar radicalmente com o desenvolvimento tecnológico. Que estaríamos voando até Marte, vivendo para sempre e que a essa altura a maioria dos nossos problemas teria desaparecido. Basta imaginar como era uma cozinha há cem anos. E em seguida comparece às cozinhas modernas de hoje em dia. O mesmo vale para outras esferas da vida. Há cada vez mais provas de que o capitalismo está reprimindo a inovação tecnológica pois não há incentivos de lucros no curto-prazo, na inovação. Estamos aperfeiçoando tecnologias de simulação, podemos fazer filmes incríveis de ficção científica, os efeitos especiais são ótimos, mas desistimos da ideia de que estaremos efetivamente fazendo alguma dessas coisas fantásticas em um futuro próximo. E o terceiro argumento afirma que o capitalismo traz estabilidade.

“Há cada vez mais provas de que o capitalismo está reprimindo a inovação tecnológica pois não há incentivos de lucros no curto-prazo, na inovação.”

Às classes médias?

Expandindo a prosperidade para que a maioria das pessoas tornem-se classe média, e esse crescimento da classe incentiva a estabilidade democrática. Isso não aconteceu. Em vez disso, aqueles que estão sendo expulsos da classe média estão cada vez mais dispostos a votar em qualquer um que esteja se candidatando contra a estabilidade. Então o que resta são apenas dois argumentos. Um deles é de que não há alternativas: é ou isso, ou Coreia do Norte. O outro argumento é moral.

Moral?

Estou cada vez mais convencido de que o sistema só se mantém através da moralidade. Uma moralidade bem esquisita, deturpada. É por isso que escrevi um livro sobre a moralidade da dívida, e outro sobre a moralidade do trabalho. Até quem entende que nosso sistema econômico é fundamentalmente estúpido e injusto parecem acreditar que quem não paga as dívidas é uma pessoa ruim. Caloteiros são os culpados irresponsáveis. De modo similar, até pessoas que odeiam seus chefes parecem achar os “vagabundos” ainda piores. Se você não estiver trabalhando mais do que gostaria, com algo de que não gosta muito, preferencialmente para alguém por quem não morre de amores, você é uma pessoa ruim, um parasita, e certamente não é merecedor da assistência pública. As pessoas parecem realmente acreditar na sacralidade do trabalho. Não apenas do trabalho, dos empregos. Todo mundo deveria ter um emprego. Não importa se esse trabalho está trazendo algo de bom a alguém ou não. Pelo menos um terço da mão de obra trabalhadora parece estar pessoalmente convencida de que se seu trabalho não existisse, isso não faria diferença alguma —ou até mesmo que o mundo ficaria melhor. A sacralidade do trabalho, a sacralidade da dívida, a sacralidade do “mercado” —todas essas coisas estão profundamente internalizadas e todas são extremamente problemáticas.

Problemáticas… Erradas?

Pessoas ricas não acreditam em dívidas; pelo menos não em suas próprias dívidas. Certamente não acham que pagá-las seja uma questão de honra. Se tivessem descoberto um meio para não me pagar, metade dos meus ex-empregadores não teriam pago. Mas para além disso, se você está em uma posição vulnerável, dívida é moralidade; se você está em uma posição de força, dívida é poder. Por isso, comecei o livro sobre Dívidas com um antigo provérbio: se você deve ao banco 100 mil dólares, você pertence ao banco. Se você deve ao banco 100 milhões de dólares, o banco pertence a você.

“Se tivessem descoberto um meio para não me pagar, metade dos meus ex-empregadores não teriam pago. Mas para além disso, se você está em uma posição vulnerável, dívida é moralidade; se você está em uma posição de força, dívida é poder.”

Você compara com frequência a dívida a uma promessa. Mas se a promessa é quebrada por um dos lados, por que o outro lado deveria respeitá-la ainda?

Exatamente. Mas o poder importa. Veja as relações internacionais. Se a Serra Leoa deve um bilhão de dólares aos Estados Unidos, está enrascada. Se os Estados Unidos devem um bilhão de dólares à Coréia do Sul, a Coréia do Sul está enrascada. Mas a artimanha moral é muito eficaz. Caso contrário, pessoas decentes não pensariam que é justificável tirar comida de crianças famintas porque seu antigo ditador contraiu um empréstimo ruim. É por isso que muitos de nós têm tentado encontrar meios de popularizar a noção de “dívida odiosa”. Não é uma frase muito atraente. Esse termo foi inventado por uma corte norte-americana depois que os Estados Unidos tomaram Cuba do império espanhol. O governo espanhol insistiu que os Estados Unidos agora eram responsáveis pelas dívidas pendentes do governo cubano para com a Espanha. As cortes norte-americanas decidiram que Cuba não devia dinheiro à Espanha, pois os empréstimos foram tomados sob condições injustas. É isso o que eles queriam dizer com “dívida odiosa”: um empréstimo que ninguém tomaria caso realmente fosse livre e estivesse agindo de acordo com seus próprios interesses.

Muitas dívidas pessoais também não se encaixam nessa definição?

Sim, essa é a ideia. Como fazer as pessoas enxergarem, digamos, uma hipoteca de risco como uma dívida odiosa? Somos ensinados que pagar as próprias dívidas é uma questão básica de moralidade. Isso se deve ao fato da nossa concepção de obrigação moral ter sido moldada a partir da obrigação financeira, e não o contrário. Será que a noção de dívida odiosa pode começar a transformar isso? Será que não há dívidas cuja própria tentativa de extorsão é imoral? Na verdade, na Europa Medieval, isso teria sido senso comum legal básico, era o tipo de problema que os juristas discutiam a respeito com frequência.

A famosa disputa acerca de um pedaço de carne da peça ‘O Mercador de Veneza’, de Shakespeare?

Ou o exemplo de um ovo, se você estiver na prisão.

Um ovo?

Sim, escolásticos medievais usavam esse exemplo com frequência —lembre-se, naquela época, as questões econômicas eram questões morais que recaiam em direito canônico, tudo fazia parte da teologia. Na verdade, eu diria que até hoje a economia é um ramo da teologia, isso só não é mais admitido. O exemplo era esse: há um homem na prisão, em uma dieta de pão e água. Ele está morrendo lentamente. O detento na cela ao lado tem amigos que lhe trazem comida; ele diz, por exemplo: tenho alguns ovos cozidos aqui. Eu te darei um desses ovos se você assinar esse documento me concedendo os direitos de todas as suas propriedades. O primeiro aceita, come o ovo, sobrevive, e alguns anos depois ambos saem da cadeia. Esse contrato é executável?

Hoje em dia… pode ser.

A resposta hoje em dia é: sim. Nós estamos fazendo praticamente a mesma coisa com os países do hemisfério Sul há anos. Mas a maioria dos teólogos medievais iriam contestar: obviamente não. O homem que assinou concedendo sua propriedade não era um agente livre. Como no caso dos países do Sul, isso se torna ainda mais válido se o cara com todos os ovos fosse o guarda, em vez de um presidiário. Isso traz uma nova dimensão ao problema. Trata-se de uma dívida odiosa. Obviamente. Mas a palavra “odiosa” é antiquada e não soa bem. Tentamos várias vezes criar uma frase mais cativante. Talvez possamos falar em capitalismo gângster, dívida de máfia? Mafiosos são muito bons em fazer uma extorsão parecer moral, ao enquadrá-la como dívida. Como transmitir ao senso comum que, da mesma maneira que seria melhor que ninguém tivesse certos empregos, algumas dívidas não deveriam ser pagas?

Isso é realista?

Muitos de nós ainda estão tentando encontrar um jeito de quebrar o feitiço. Talvez essa pandemia possa nos ajudar a ver com mais clareza que o que chamamos de “finanças” se trata apenas das dívidas de outras pessoas, e essas dívidas são intencionalmente produzidas pelo conluio entre corporações financeiras e o governo, entre instituições aparentemente públicas e privadas que estão cada vez mais difíceis de diferenciar. Gosto de usar o exemplo do J.P. Morgan Chase, o maior banco dos Estados Unidos. Não me lembro do número exato, mas algo como 76% de seu lucro provinha de taxas e multas. Pense nisso. Eles lucram quando você comete um erro. Então, têm que criar um sistema confuso o suficiente para que tenham certeza que X por cento das pessoas irá cometer um erro, mas que não seja confuso a ponto de não poderem dizer “olha, não é nossa culpa se você não consegue administrar seu saldo”. Cada vez mais, todo o aparato do governo e do sistema financeiro estão se tornando um esquema gigantesco desenhado para nos conduzir ao endividamento. Como a maioria dos lucros que estão sendo transacionados em Wall Street, índice Nikkei ou FTSE vêm das finanças, não da indústria, é isso que está movimentando o capitalismo hoje.

Em seu livro Dívida —os primeiros 5 mil anos, você descreve também antigos rituais nos quais todas as dívidas são apagadas. Quais são as circunstâncias sociais sob as quais cancelamentos de dívidas como esses podem ocorrer?

Cancelamentos de dívidas ainda acontecem. Houve um na Arábia Saudita e acho que começaram no Kuwait logo depois da Primavera Árabe. Simplesmente cancelaram as dívidas de todo mundo para evitar instabilidade. De fato, foram muito cautelosos em não enquadrar isso como “cancelamento”. Para manter as aparências, eles fingiram pagar tudo com petrodólares. Na Índia, também cancelam periodicamente dívidas de agricultores, mas em silêncio, parece haver uma vontade de não querer que a maioria das pessoas saibam que os governos têm o poder de fazer isso. Dívidas são canceladas o tempo inteiro, mas como são canceladas é uma questão política. Os poderes em questão estão convictos que devem pelo menos fingir que as dívidas são sagradas, você só está saldando elas —mesmo que com dinheiro que acabou de criar. Isso é obviamente besta, seria perfeitamente fácil para os governos simplesmente decretarem uma certa categoria de dívidas não obrigatórias, como os Estados Unidos fizeram com Cuba e Espanha. Qualquer governo poderia fazer o mesmo com, digamos, dívidas pessoais, dívidas de hipoteca, ou empréstimos estudantis: poderiam dizer, “claro, se você se sente honrado em pagar essa, vá em frente, mas nós não usaremos o poder da corte para forçá-lo”. Outro recurso, que é frequentemente usado na África do Sul, é uma pontuação de crédito. Já que mesmo se a corte não tornar uma dívida obrigatória, você pode acabar estragando sua pontuação de crédito e ser impedido de fazer empréstimos. Então os estados podem, e às vezes o fazem, simplesmente zerar a pontuação de crédito de todo mundo.

“Cada vez mais, todo o aparato do governo e do sistema financeiro estão se tornando um esquema gigantesco desenhado para nos conduzir ao endividamento. Como a maioria dos lucros que estão sendo transacionados em Wall Street, índice Nikkei ou FTSE vêm das finanças, não da indústria, é isso que está movimentando o capitalismo hoje.”

E a ideia de dívida não pode existir sem coerção, que você afirma frequentemente?

Agora mesmo estou recebendo e-mails da Virgin Media. Recentemente, me mudei de casa e cancelei minha assinatura. Mas estão, de algum modo, me cobrando pelos últimos dois meses que nem sequer passei lá. Têm me mandado cartas cada vez mais ameaçadoras e desagradáveis, porque sabem que há um aparato legislativo os amparando. Se você simplesmente recusar-se a consentir, em algum ponto, isso vai parar em um oficial de justiça, que vai te perturbar, e se você recusar durante muito tempo, e a soma for muito alta, vão começar a subtrair seus bens, e se você tentar impedi-los, ameaças físicas começam a entrar em cena. Facilmente esquecemos que a coerção violenta está por trás das nossas leis. O poder de fazer o mal. No caso do irritante cobrador de dívidas, pode estar a trinta ou até mesmo a cem passos de distância. Mas está sempre lá, pois caso contrário, você simplesmente o ignorava. E há outra correlação interessante que tenho pensado a respeito ultimamente.

Qual?

Talvez também seja o caso de que quanto maior seu potencial de causar danos às pessoas, mais as pessoas te pagam.

O que você quer dizer?

Sempre digo que quanto mais o seu trabalho beneficiar os outros, menor a probabilidade de você ser pago. Recentemente, alguém me disse que talvez seja o oposto: quanto mais o seu trabalho é capaz de causar danos aos outros, maior sua probabilidade de ser pago. Imediatamente pensei no trabalho de um economista chamado Blair Fix, que fez uma análise de renda no setor corporativo e descobriu que a chave para a remuneração não é a “produtividade”, como os economistas costumam insistir, mas simplesmente o poder. Quanto mais alto você estiver na cadeia de comando, maior seu salário. Em certo sentido, isso não é novidade para ninguém. Mas ele tem os números. Então tudo se trata de poder.

Poder de fazer o quê?

Bem, essa é a questão. Talvez seja mesmo o imenso potencial de causar dano. Assim como Wall Street não costuma beneficiar o público, mas pode causar um dano enorme se quebrar. Talvez o capitalismo seja apenas uma forma privatizada de poder, que deriva diretamente de formas de poder feudais-militares. Pense nas corporações como as catedrais do poder capitalista. Seus donos já possuem toda a riqueza e poder que é possível. Em certo ponto, a pessoa já tem todo dinheiro e os prazeres, todas as prostitutas e toda cocaína que possa querer. Tudo o que resta é ego e narcisismo. É por isso que você tem uma legião de empregados inúteis: para que algum Vice Presidente Executivo babaca possa dizer “vejam só meu império! É maior que o império daquele outro Vice Presidente Executivo”. O planeta está morrendo para que pessoas assim se sintam bem consigo mesmas. Eles estão sugando recursos enormes para construir suas torres gigantes e enchê-las com subordinados inúteis apenas para uma gratificação do ego. Quando obtive relatos de empregos de merda, ouvi incontáveis exemplos desse tipo de coisa. Toda corporação precisa ter sua própria revista interna com altos valores de produção e artigos em destaque retratando este ou aquele gerente de alto escalão. Qual é a razão disso? Ninguém lê essas revistas! Bem, quase ninguém. Elas existem para que cada gerente possa ter o prazer de ver um artigo bajulador dele mesmo no que parece ser uma revista de notícias. Espécies inteiras de seres vivos estão sendo extintas a cada ano por esse tipo de coisa. Mas, no fim das contas, isso acontece porque ele está em posição de tornar a vida dos outros miserável. E claro que essa pandemia lançou luz sobre o lado oposto disso: quanto mais diretamente seu trabalho ajudar outras pessoas, menor sua probabilidade de ser pago.

David Graeber, em Londres, a 1 de Maio de 2015, com o movimento “Occupy Democracy”. @economicsociology.org

“Recentemente, alguém me disse que talvez seja o oposto: quanto mais o seu trabalho é capaz de causar danos aos outros, maior sua probabilidade de ser pago. E claro que essa pandemia lançou luz sobre o lado oposto disso: quanto mais diretamente seu trabalho ajudar outras pessoas, menor sua probabilidade de ser pago.”

Profissionais da saúde, trabalhadores de fábricas e prestadores de serviços essenciais foram aclamados durante a pandemia. São tidos como heróis do nosso tempo. Mas seus salários não aumentaram e são os mais propensos a perderem seus empregos quando a crise acabar. Como pode?

Porque a essência do trabalho deles não é fazer o mal. Considere os trabalhadores de emergência que estão lá, arriscando suas vidas, para que o sistema de saúde não entre em colapso. Na teoria, um movimento sindical é mais forte quando seu trabalho é essencial, e traz muito poder de barganha aos trabalhadores. Sendo assim, se os profissionais da saúde decidissem fazer greve por melhores condições e salários, sem dúvidas esse seria o melhor momento. Mas isso não acontece na realidade.

Por quê?

Em um certo sentido, eles têm muito poder. É um paradoxo. Parecido com aquela piada que diz que se você deve um milhão ao banco, você pertence ao banco; mas se você deve cem milhões, o banco pertence a você. Se uma pessoa tem tal poder que possa fazer muito mal aos outros, de modo muito imediato, ela se torna prisioneira da sua própria capacidade. Não pode usar esse poder —pois seria muito devastador. Um mafioso, ou o CEO de uma empresa privada, só o que sabem fazer é o mal, mesmo fingindo o contrário. Então podem exercer seu poder impiedosamente. Já, como apontado pelas feministas, uma greve da saúde e dos trabalhadores do cuidado seria absolutamente devastadora, tão devastadora que eles não a fariam, pois se importam demais com as pessoas que começariam a sofrer e morrer imediatamente. Mas ao menos a crise poderá abrir nossos olhos para esse fato: em última instância, uma economia é simplesmente o jeito que tomamos conta um do outro, que todo trabalho real é, no final das contas, um trabalho de cuidado.

Durante a pandemia, começamos a usar ferramentas de comunicação em larga escala —para a escola, trabalho e eventos sociais. Vemos agora que podemos viver sem a maioria das nossas viagens de trabalho e reuniões. Essas mudanças serão permanentes?

Nossos hábitos de viagem terão definitivamente que mudar, e isso vai afetar outras partes da economia. David Harvey mostrou que, desde 2008, a retomada econômica —partindo do pressuposto que de fato houve uma retomada, o que é contestado por algumas pessoas— foi amplamente construída em volta de experiências consumidoras em vez de bens de consumo. Durante décadas, o crescimento econômico foi fomentado pela produção e venda de algo tangível. Automóveis. Smartphones. Em seguida, o fenômeno se acelerou com a venda de carros que vão quebrar dentro de alguns anos, ou celulares que vão ficar obsoletos. Mas agora a área de expansão é ainda menos tangível: é baseada na experiência, em ir para as Bermudas, comer fora, ou, se for um dos consumidores mais iluminados, viajar para a Floresta Amazônica, visitar um xamã e provar alguma droga psicodélica. Harvey acrescenta que as classes trabalhadoras também se beneficiaram dessa tendência, pois vários novos aeroportos, hotéis, alojamentos para turistas e outras infraestruturas foram construídas para sustentar as voltas ao mundo da classe média. Isso sem mencionar todas as plataformas digitais como Uber e Airbnb que ajudaram na financeirização dos setores turístico e de moradia. Isso ele não disse, mas eu acrescentaria que é uma ironia que a construção civil, junto às indústrias extrativas, tornaram-se simultaneamente a principal base de apoio da direita populista, aquela que alega se opor a essa mesma elite cosmopolita, em nome da identidade nacional. E é claro que é essa classe cosmopolita, os ricos e seus aliados profissionais-gerenciais, que através desse modo de consumo propagaram o vírus pelo mundo afora.

Na Eslovênia e em alguns outros países europeus, o vírus foi disseminado por turistas de esqui, que retornavam das férias na Itália e na Áustria. Muitos deles médicos e outros profissionais de classe média ou classe média-alta. No entanto, o governo queria acionar o exército para evitar a entrada dos imigrantes no país para conter a pandemia.

Sim, eles vão culpar os migrantes ou os viajantes —como os ciganos são chamados no Reino Unido— mas não os que viajam a negócios, claro.

Falando nisso, você conheceu o Mark Fisher quando vocês lecionavam na Goldsmiths? Meus colegas editoriais insistiram que eu perguntasse sobre Mark, porque o trabalho dele ressoa com muitos jovens intelectuais na Eslovênia, assim como alguns de nossos autores.

Esbarrei com ele algumas vezes e nos cumprimentamos, mas nunca cheguei a conhecê-lo. O que eu lamento muito, hoje em dia. Durante muito tempo, costumava pensar nele como uma pessoa irritante que conseguia plagiar minhas melhores ideias antes mesmo que eu as tivesse (risos).

De fato, vocês tem algumas ideias em comum…

E é surpreendente como tivemos ideias tão parecidas, pois nós nunca as discutimos.

Ambos eram fascinados pela ideia de carros voadores. Ou melhor… por que ainda não há carros voadores.

Me irritava muito! Eu era uma criança nos anos 60, e éramos fascinados pelo programa espacial. Tinha sete anos quando pousamos na Lua. Todos sabíamos de que maneira o futuro deveria ser. Fiquei muito decepcionado que o 2001 da vida real não tinha nada a ver com o 2001 que todos vimos no filme. E o que me incomodava era… não apenas o fato de não acontecer, mas que ninguém se importava com o fato de não ter acontecido. Todo mundo agiu como se estivessemos mesmo vivendo essa era incrível de maravilhas tecnológicas. Mas não é verdade! Claro, tínhamos portas que abriam sozinhas e os comunicadores do Star Trek. Mas claramente não tínhamos os tricorders ou qualquer uma das coisas realmente engenhosas. Onde estavam as drogas da longevidade, os feixes de teletransporte, os dispositivos antigravidade?

A indústria automobilística está tentando nos convencer que os novos carros elétricos são fascinantes. Mas foram apresentados pela primeira vez há mais de cinquenta anos atrás.

Exatamente! A essa altura, deveríamos estar explorando as luas de Saturno. É tão frustrante! Queria escrever um artigo parecido em 1999, mas todas as revistas ignoraram minhas propostas. Em vez disso, estavam celebrando o começo de um novo milênio com matérias previsíveis sobre estarmos vivendo em um mundo com maravilhas tecnológicas nunca vistas antes.

Então você esperou por mais de 10 anos para finalmente conseguir publicar o artigo?

Bem, infelizmente ele se manteve atual, e eventualmente cheguei ao ponto de poder publicar qualquer coisa que quisesse. Então criei algumas teorias sobre as razões para a grande estagnação tecnológica. O engraçado foi que depois de escrever esse artigo, vieram dois tipos de resposta. Primeiro dos fanáticos por ciência, que frequentemente apareciam para me repreender dizendo que eu não sabia nada, ou então não ignoraria todas as coisas incríveis que estão acontecendo, ou que estavam prestes a surgir. Carros voadores estão prestes a surgir há quase 60 anos. O outro grupo eram os verdadeiros cientistas, que quase invariavelmente disseram: sim, verdade! É impossível receber verbas para pesquisas de base hoje em dia. O sistema está configurado para garantir que não haja mais nenhuma grande inovação. Isso tudo é bem triste. Ensinamos nossos filhos a acreditarem que as coisas podem e vão ficar melhores. Mas depois… Nos disseram que os ideais iluministas de progresso e avanço tecnológico foram destruídos na Primeira Guerra Mundial. Mas depois disseram que foram desintegrados pela ascensão do fascismo. Ou Auschwitz. Ou a bomba de Hiroshima.

“É impossível receber verbas para pesquisas de base hoje em dia. O sistema está configurado para garantir que não haja mais nenhuma grande inovação.”

Depois veio Chernobyl…

Isso mesmo, e todo os outros grandes desastres tecnológicos do século XX. Mas perceba o padrão. Se os ideais tivessem mesmo sido apagados pela Primeira Guerra, não estariam lá para serem apagados novamente pelo fascismo. Ou pelo ataque a Hiroshima. Ou Chernobyl. Quer dizer então que nunca foram efetivamente apagados. Na verdade, isso sempre volta porque ainda não encontramos outra história para ensinar aos nossos filhos.

Assim como as mentiras inofensivas sobre o Papai Noel?

O que vamos dizer? “Desculpa, filho. A história é uma merda, as pessoas são horríveis, e tudo vai só piorar.” Então, quase que por culpa, ainda fingimos acreditar em um futuro melhor. Isso vira um círculo vicioso. As crianças crescem aprendendo essa versão utópica da realidade, que é completamente falsa. Pouco a pouco, descobrem como o mundo funciona e, obviamente, ficam muito furiosos. Tornam-se adolescentes amargos. Alguns mais tarde viram jovens adultos idealistas e tentam mudar as coisas. Mas quando têm seus próprios filhos, desistem e redirecionam seu idealismo a eles, fazendo a mesma coisa: tentam construir uma pequena bolha onde podem fingir que as coisas vão mesmo melhorar. É o único jeito de justificar os compromissos morais.

Em ‘Utopia of Rules‘ você argumenta que há todo um sistema a cargo de tornar impossível qualquer tipo de pensamento ambicioso.

Sim, a máquina da desesperança.

A totalidade da burocracia?

Burocracias não são lugares em que a promoção é baseada no mérito. Nelas, a ascensão está baseada na disposição do indivíduo em entrar no jogo e fingir que o que importa é o mérito. É muito similar no meio acadêmico. Não é muito importante o quão inteligente você é. É mais importante fingir que as pessoas no topo têm alguma razão para estar lá, mesmo que você —e todo mundo— saiba que não é o caso. O maior pecado é acreditar que você tem alguma posição acadêmica por ser efetivamente bom em ensinar ou pesquisar. Principalmente se você vem do contexto social errado, irá aprender que sim, é possível ser aceito como membro da elite, mas apenas se estiver disposto a agir como se sua maior aspiração na vida fosse ser aceito por eles —eles tendo ou não alguma razão efetiva para estarem lá.

O que nos traz de volta a Mark Fisher. Ele dedicou muito de sua escrita à síndrome do impostor. Vindo da classe trabalhadora, sempre sentiu que não pertencia à academia ou a qualquer outro grupo social. Sempre se sentiu uma fraude.

Eu também venho da classe trabalhadora, mas minha experiência é diferente de algum modo. Fui educado de uma maneira que meus pais diziam que eu era a pessoa mais inteligente que já existiu. Olhando para trás, era um pouco ridículo. Ninguém podia ser tão talentoso! Então nunca tive a síndrome do impostor, já que não sentia que não tinha o mérito intelectual para trabalhar na academia. Mas eu tenho constantemente a síndrome do impostor por não ser um adulto social. Eu continuo a ser tratado tipo: tudo bem, você é inteligente mas você não é de fato um adulto. Você não é uma pessoa real. Só está fingindo. Nesse sentido, estou constantemente sujeito a me sentir como uma fraude e isso afeta sutilmente seu senso de identidade.

Essa foi também uma das razões pelas quais você quase inventou sua própria disciplina acadêmica?

Você se refere à antropologia anarquista?

Sim.

Eu não fiz isso. Meu antigo mentor, Marshall Sahlins, estava começando uma série em panfletos, e sabia que eu estava envolvido na rede de ação direta. Se interessou pela minha visão, em pensar o anarquismo sob uma perspectiva antropológica. Então escrevi o ensaio como um exercício hipotético, como seria uma “antropologia anarquista”, e porque ela não existe. O problema é que ninguém lê o livro. Só leem o título. Então, não, eu não sou um antropólogo anarquista no mesmo sentido que alguém poderia ser um antropólogo marxista. O marxismo é uma teoria que existe dentro da antropologia. O anarquismo é prática e existe dentro dos movimentos sociais. Nesse sentido, não há antropologia anarquista. Quer dizer, claro, você pode fazer antropologia de um jeito que seja útil para os movimentos sociais libertários, mas isso não é a mesma coisa.

“(Com David Wengrrow) estamos tentando mostrar que a história humana como costuma ser apresentada é apenas uma versão secularizada da bíblia”

Sua assistente me disse que você está trabalhando em seu próximo livro. E que certamente não se trata do coronavírus.

Sim, é algo em que tenho trabalhado por um longo tempo com o meu amigo David Wengrow, arqueólogo na University College de Londres. Ficamos trocando de título mas por enquanto é esse: O futuro: um prefácio de 50.000 anos.

Você parece gostar de prefácios longos.

Você quer dizer assim como Dívida: os primeiros 5.000 anos? Bom, acho que sim. Na verdade esse prefácio é ainda maior, já que estamos tentando mostrar que a história humana como costuma ser apresentada é apenas uma versão secularizada da bíblia. Havia o Éden e em seguida a Queda. No começo, estávamos todos vivendo em grupos felizes de caçadores-coletores. Era o Éden. Depois inventamos a agricultura e tudo foi por água abaixo. Tivemos a propriedade privada e pela primeira vez nos assentamos. E assim que criamos cidades, temos também Estados e impérios e burocracias e extração de mais-valia. Pelo caminho também tivemos a escrita e cultura elevada e tudo veio em um pacote, pegar ou largar.

E essa narrativa está errada?

Essa narrativa é factualmente errada e nem sequer se aproxima do que realmente aconteceu historicamente. Caçadores-coletores não viviam exclusivamente ou até mesmo predominantemente em pequenos grupos igualitários de vinte ou trinta pessoas. Ao longo da história, parecem ter alternado entre pequenos grupos e micro-cidades. Podem ter formado estruturas sociais muito elaboradas, às vezes com polícia ou reis, mas apenas por alguns meses no ano. Eles então se dissipavam e passavam a viver em pequenos grupos. A agricultura mal afetou isso e as primeiras cidades eram na verdade muito igualitárias.

David Graeber. @OutrasPalavras

Isso parece muito com o historiador Yuval Noah Harari. Ele popularizou a ideia de que passar de caçadores-coletores a uma sociedade agrária foi a raiz de todo o mal.

Sim, é bem irritante. Não é só ele, mas ele está fazendo uma versão atualizada e moderna do que é essencialmente um Jean-Jacques Rousseau dos tempos atuais. Ele foi provavelmente um dos maiores advogados do ideal romântico do bom selvagem. Um ser humano puro e livre que ainda não foi estragado pela civilização européia.

É por isso que Rousseau apelou aos seus compatriotas para voltarem à natureza?

De fato. Eu acho essa parte da história bem fascinante. Na verdade, Rousseau escreveu seu famoso texto sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens em resposta a um concurso.

Concurso?

Sim, a Academia de Dijon convidou os autores para escreverem sobre desigualdade. A propósito, Rousseau não ganhou. Mas eu realmente gostaria de saber por que intelectuais franceses do século XVIII assumiram que a desigualdade social sequer tinha uma origem. Naquela época, a França era uma das sociedades mais hierárquicas possíveis. Por que presumiram que as coisas nem sempre foram assim?

Alguma ideia?

Eu não quero entregar o ouro, mas tem muito a ver com a crítica indígena americana da sociedade europeia, que foi surpreendente levada a sério na Europa. Talvez seja melhor esperar pelo livro.

“A boa notícia é que os experimentos com assembleias de cidadãos mostram que até mesmo pessoas aleatoriamente selecionadas, apresentadas aos fatos científicos, são, quase que invariavelmente, muito mais sábios em suas tomadas de decisão do que seus representantes eleitos.”

Qual é a coisa mais assustadora que pode se tornar normal depois da pandemia?

Eu prefiro falar das coisas boas. Como assim? De repente, entramos em uma zona onde a agência histórica ressurgiu. A humanidade acaba de receber o que pode ser considerado como o maior alerta da História. Nunca aconteceu antes nessa escala uma parcela tão grande da humanidade parar e dizer: o que estamos fazendo? Essas são ótimas notícias potencialmente, já que estávamos praticamente a caminho do suicídio em massa.

E as más?

Bom, o outro lado disso é o próprio suicídio em massa. Nós estávamos beirando o apocalipse, convencidos de que nada que está a nosso alcance podia ser feito. O que me assusta é que possamos simplesmente dizer: ufa, graças a deus isso acabou, agora vamos voltar para nossas vidas antigas. Nós vimos que o mundo não vai acabar se viajarmos menos, consumirmos menos, produzirmos menos. O mundo vai mesmo acabar, bem, da forma como o conhecemos agora, se nós não pararmos de fazer essas coisas. Como podemos convencer uma população moralista que a coisa mais importante a fazer agora é trabalhar menos? Se não pararmos, em breve estaremos encarando uma escolha entre desastres que fazem a pandemia parecer com um passeio no parque, e algum tipo de solução sci-fi que poderia dar terrivelmente errado.

Quão errado?

Bem, digamos que há apenas uma coisa mais assustadora do que um fascista que nega o aquecimento global: um fascista que não nega o aquecimento global. Só deus sabe quais tipos de solução uma pessoa como essa pode inventar. De certo modo, dá para enxergar a pandemia como um experimento para a solução fascista à emergência climática que prevemos em cinco ou dez anos, se não pararmos com toda essa produção estúpida de carbono: fechar as fronteiras, culpar os estrangeiros, triar a população entre merecedores e não merecedores, normalizar o autoritarismo. Em seguida, vão tentar algum conserto tecnológico: semear cristais no oceano, eco-engenharia… Alguns anos atrás, estava falando com Bruno Latour e ele me disse que estava muito preocupado que chegássemos a esse ponto, pois as únicas instituições grandes o suficiente para reagir na escala que o problema requer são os exércitos americano e o chinês. Com sorte, estarão operando juntos e não um contra o outro. Outro dia, estava falando com Steve Keen e ele acha que provavelmente vai ser a última opção, porque se as coisas esquentarem muito, grandes partes do extremo oriente se tornarão inabitáveis. Esperamos mesmo que a China vai apenas sentar e observar? Irão evacuar em silêncio suas províncias no Sul porque os americanos não querem recuar no carvão? No entanto, se começarem a mudar a composição da atmosfera, podem acabar colocando a Europa e a América do Norte de volta à era glacial. Quem sabe?

“Alguns anos atrás, estava falando com Bruno Latour e ele me disse que estava muito preocupado que chegássemos a esse ponto, pois as únicas instituições grandes o suficiente para reagir na escala que o problema [a emergência climática] requer são os exércitos americano e o chinês.”

Mas apesar disso… Você ainda tem esperanças de que a humanidade possa ouvir esse maior alerta da História?

Acho que a coisa mais sábia que li a respeito foi de um físico que aponta para o fato que nosso verdadeiro problema é não reconhecermos que nós mesmos somos parte da natureza. Sim, claro, as mudanças climáticas são causadas pela idiotice humana. Aqueles que dizem que é um fenômeno natural estão apenas negando a realidade. Tudo isso é verdade. Mas já aconteceu no passado distante, antes dos humanos sugerirem, de a temperatura da terra flutuar para cima e para baixo em muitos graus. Se sobrevivermos por tempo o suficiente, talvez por cem mil anos, e isso começar a acontecer, bem, teremos que fazer algo a respeito, não é mesmo? Mas se quisermos ser a “autoconsciência da natureza” como costumavam dizer no século XIX, talvez seja hoje o dia de tirarmos os políticos do caminho, pois são seres extremamente não-autoconscientes. Decisões como essa só podem ser tomadas por algum tipo de deliberação coletiva. A boa notícia é que os experimentos com assembleias de cidadãos mostram que até mesmo pessoas aleatoriamente selecionadas, apresentadas aos fatos científicos, são, quase que invariavelmente, muito mais sábios em suas tomadas de decisão do que seus representantes eleitos. É possível tornar o povo como um todo mais esperto que qualquer indivíduo desse todo, em vez de mais estúpido. De certa maneira, é isso que é o anarquismo, encontrar meios para fazer isso. Isso pode acontecer. Mas vamos ter que começar a botar a mão na massa.


Artigo en Disenz:
https://www.disenz.net/en/david-graeber-on-harmful-jobs-odious-debt-and-fascists-who-believe-in-global-warming/

O entrevistado

David Graeber

David Graeber

Nova Iorque, 1958-Veneza, 2020. Autor, entre outros ensaios, de Towards an Anthropological Theory of Value: The False Currency of our Dreams (2001), Fragmentos de uma Antropologia Anarquista (2004), Debt: The First 5000 Years (2011) and Shitty Jobs: A Theory (2018). Foi professor na Universidade de Yale (1998-2007), na Universidade de Londres (2007-13) e na London School of Economics (2013-20). Para além da sua produção intelectual, Graeber esteve sempre envolvido em activismo político, como o movimento Occupy Wall Street e outros protestos contra a terceira cimeira das Américas no Quebeque (2001) e o Fórum Económico Mundial (2002). Com David Wengrow, citado na entrevista, publicou 'Como mudar o curso da história humana (pelo menos a parte que já aconteceu)' (2018), e o ensaio conjunto 'The Dawn of Everything: a New History of Humanity' está prestes a ser publicado.

Outras entrevistas

O entrevistado

David Graeber

David Graeber

Nova Iorque, 1958-Veneza, 2020. Autor, entre outros ensaios, de Towards an Anthropological Theory of Value: The False Currency of our Dreams (2001), Fragmentos de uma Antropologia Anarquista (2004), Debt: The First 5000 Years (2011) and Shitty Jobs: A Theory (2018). Foi professor na Universidade de Yale (1998-2007), na Universidade de Londres (2007-13) e na London School of Economics (2013-20). Para além da sua produção intelectual, Graeber esteve sempre envolvido em activismo político, como o movimento Occupy Wall Street e outros protestos contra a terceira cimeira das Américas no Quebeque (2001) e o Fórum Económico Mundial (2002). Com David Wengrow, citado na entrevista, publicou 'Como mudar o curso da história humana (pelo menos a parte que já aconteceu)' (2018), e o ensaio conjunto 'The Dawn of Everything: a New History of Humanity' está prestes a ser publicado.

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