Pendragão
Bursário de figuras para educação de príncipes celtas
Uther, named Pendragon, a tittle given to an elective sovereign, paramount over the many kings of Britain.
Bulfinch’s Mythology: Arthur.
Grande de força e de muito poder, o magnífico, o temível e admirável senhor da batalha, derrocou cem torres, esgorjou cem defensores delas, talhou cem cabeças de reis e cem capas foram postas para os seus pés calcarem.
Assim foi Uthr Bendrago, Pandragon, o grande dragão, o chefe de chieftains. Assombrou o mundo com a esteira do seu poder e sobranceou, com a sua possante voz e liderança, todos os seus pares. Dentre eles elevou-se e sobre a mesma pedra dos velhos reis foi corono, primus inter pares, príncipe entre príncipes, rei de reis.
Perdeu-se quando teve a vitória, o poder na mão e o governo. Levado das suas paixões. E com ele perdeu-se a paz, e a justiça, e o reino.
Sem dúvida Uthr é uma personagem-símbolo, das tamanhas no universo céltico, por direito próprio e pela sua funcionalidade no esquema da tradição principal. Figura poliédrica ou composta por várias camadas e personagens, por causa da evolução da tradição. Das primeiras gestas e restos de poemas conservados até à fixação canónica como antecessor de Artur, seguindo a versão de Geoffrey de Monmouth na sua admirável Historia Regum Britanniae ou De gestis Britonum (a História dos reis da Bretanha, ou a Gesta dos Bretões).
Como todas as personagens do Ciclo e Matéria da Bretanha, ou dos ciclos, por causa da sua revisão e interpretação necessária na procura das diversas legitimações e projetos políticos dos Mecenas e Cortes em que se reescrevem, a personagem foi variando no decurso do tempo: passando de ser um cavaleiro principal (talvez na origem esse mesmo Duque Gorlois em que se transfigura por arte de encantamento) famoso pela sua força, destreza, liderança e audácia na batalha e transfigurado na paz pelas paixões e ambições.
De homem de Artur, irmão do “derradeiro romano” Ambrosius Aurelianus (Aurelius Ambrosius), chefe de guerra e provavelmente rei antepassado, passou a ser na idealização do génio galês, o pai de Artur. Legitimidades em jogo e magia, com a usurpação e justificação da violentação de Igraine, senhora de Tintagel e a tomada por engenho e magia do inexpugnável Castelo.
Pouco importa se morreu como o seu irmão e antecessor pelo veneno na água do poço real servida pelos inimigos, se foi debilitando-se rapidamente por causa dos seus excessos e paixões, ou se morreu por imprudência em batalha.
Não importa se verdadeiramente foi rei antes de Artur. Se morreu em combate ou emponçonhado. Até nem importa se foi verdadeiramente o pai de Artur ou uma simples legitimação fabulosa (tão útil e grata a tantas e fundamentais dinastias de bastardos roturistas). O interessante é que a figura vai perdendo força e apoio, esmorecendo, e com ele o projeto novo e o reino. Celebrado e desejado por condes, justiceiro para o povo, termina e quase se esfarela na memória. Após ele, pois: o caos, a guerra, o trunfo das forças mais brutas e a terra mais uma vez devastada.
O que mais interessa é essa figura de líder fulgurante na escalada ao poder, ambicioso, atrativo, sedutor e genial, implacável com os inimigos e que sabe domenhar os aliados com dura mão, génio na batalha e herói na luta. Mas que não sabe ser na vitória. Incapaz de entender as instituições, de gerir o reino e o governo, que não sabe ser patriarca, alicerce, fundador da estirpe.
Ele, o grande, o temível, o audaz. O enfant terrible. Congelador de presentes, sem semente firme de futuro. Quantas das nossas gentes têm esta síndroma do Pendragão.
Ernesto Vazquez Souza
Crunha, 1970. Licenciado em Filologia Hispânica (Galego-Português) 1993, e também Doutor nas mesmas áreas (2000) pela Universidade da Crunha. Pesquisou entre 1994 e 2000 pelos principais arquivos e bibliotecas da Galiza; e pelos de Madrid, Alcalá, Salamanca, La Habana, Montevidéu e Buenos Aires. Participou no Programa Intercampus (Pelotas Brasil-RS, 1995); foi professor visitante de Língua e cultura galega no Instituto Cervantes de Chicago (EE.UU) (1997), bolseiro da Deputação da Crunha (1997-98), leitor de Língua galega em Montevideu (R. O. Uruguai) no Curso 1998 (onde colaborou nas instituições da emigração e participou no Programa Radial Sempre em Galiza); durante os anos 2000-2001 foi bolseiro pesquisador de pós-doutoramento da UdC. A partir do ano 2001 mora em Valladolid, e trabalha como Bibliotecário nessa Universidade.
Especialista em história do impresso galego na etapa contemporânea, tem focado os seus contributos arredor do movimento das Irmandades da Fala, Ánxel Casal, o republicanismo, o laicismo e a maçonaria galega, e disto publicou algum trabalho sobre história, contexto político e cultural do livro galego das primeiras décadas do século XX. Sócio da Associaçom Galega da Língua e membro da Academia Galega da Língua Portuguesa; atualmente é o diretor do Portal Galego da Língua.
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2 comentários em “Pendragão”
És um sábio… Meu
Que delícia ler a você… Adoro
“Ele, o grande, o temível, o audaz. O enfant terrible. Congelador de presentes, sem semente firme de futuro. Quantas das nossas gentes têm esta síndroma do Pendragão”
Isso que se pintou aí é verdadeiramente um galego, que está bem certificado por Ernesto como tabelião do nosso nacional cartório que é.