Quem quiser pontificar que faça as pontes

Bursário de figuras para educação de príncipes celtas | Bran

“A fo ben, bid bont” 
(Branwen ferch Lyr, Mabinogi)

Dentre as histórias e figuras que temos na bolsa e que o conhecimento e a experiência (adquirida em boa proporção tanto à base de paus como de leituras), destacamos hoje a história com a miga do dito famoso de Bendigeit Bran, filho de Ler, rei da Ilha Grande da Bretanha num dos tempos remotos em que o Gales era o centro desse brumoso mundo atlântico, em que a divisão entre os seus, e a guerra com os parentes era a mesma, marcante continuidade e final ruína de todas as casas.

Brân fab Llyr/Bendigeidfran (Brân the Blessed, Bran o bendito, o bieito Bran) é uma personagem central do segundo ramo dos Mabinogi, junto com a sua irmã: Branwen ferch/uerch Lyr. Gigante, deus do mar ou da gínea dos deuses antigos (o Ler da Cantiga); poderoso rei do Gales com o seu Castelo em Londres. Bran, nas complexas etimologias interferidas quer dizer “o corvo”, heráldica antes da letra com que compartilha referentes simbólicos, visão, sabedoria, permanência e anúncio de drama. Em qualquer caso, a figura percorre os fundos da mitologia céltica, sempre como um grande e sábio rei, bom companheiro na festa e na batalha, nada impulsivo, mas reativo e que compõe um par –talvez sendo uma mesma personagem na origem– com a sua irmã Bronwen (a de peito alvo ou branco) unificada em nome comum.

A história central é conhecida; a chegada inesperada dos Irlandeses de Matholwch pelo pequeno mar da Irlanda, na procura uma aliança por matrimónio com Branwen. O acordo e a grande festa que decorre magnífica e hospitaleira até à ofensa de Efnisien, o meio-irmão de Bran e Branwen, que corta os beiços e orelhas dos cavalos do Rei Matholwch (o mestre Mendez Ferrin ecoa a cena terrível com mestria e a história) o que é reparado por Bran a custo de presentes entre os que vai o Caldeiro mágico que devolve a vida (mas sem voz) aos mortos.

Mas o insulto terá consequências nefastas para Branwen, que será na Irlanda quase repudiada pelo seu homem, após o nascimento do seu filho, escravizada como servente pela corte e castigada cada noite a receber duas labaçadas do porteiro. Porém, Branwen consegue educar um passarinho que levará mensagem a Gales. E Bran invadirá Irlanda.

Após atravessar o mar, umas quantas batalhas, algumas traições e a final passagem do Llinon, faz-se uma breve paz que Efnisien consegue de novo quebrar jogando no lume o seu sobrinho, filho de Branwen e herdeiro de Matholwch. E a que segue a clássica batalha apocalíptica, com enorme chacina ao solpor, onde Bran recebe a ferida fatal nas coxas e na que apenas sobrevivem cinco mulheres grávidas que repovoarão a Irlanda e sete pelos galeses. Os quais serão encarregados de levar a cabeça decepada, mas magicamente viva de Bran.

No caminho de volta morre Branwen, de coração roto pela desfeita. E a cabeça, viva, durante os 87 anos em que durou a festa de respeito e em que participou conversando, até que finalmente decaiu e foi enterrada em White Mound (Gwynfryn, a Mota branca) em Londres, a olhar para a França e que rodeada de corvos avisados, serve, até hoje, de talismã protetor das invasões. O percurso da cabeça, dito de passagem, lembra um tanto a história e tradição do apóstolo Santiago e tem também um caráter afirmador do líder que deixa legado.

@susan_griffith2

Deixo então, para refletirmos a versão livre, do dito galês, atribuído Bran, quando a sua hoste de delicadas alianças se encontra detida na beira do infranqueável e mágico (como podia ser doutra maneira?) rio Llinon, por destruição de ponte pelo fugitivo inimigo e a piques de começar a briga natural entre tantas poderosas nações e destacados capitães.

E diz Bran, ao mesmo tempo em que deita seu corpo tamanho para fazer dele ponte: A fo ben, bid bont (/a uo penn, bit pont), dito que prendeu e ainda hoje se cita mesmo na inauguração de pontes em Gales; e normalmente traduzido e segundo o caso: “quem quiser ser rei/líder/chefe, seja a ponte”.

Mais por imaginação que por saber, com permissão do grande Higino Martins, do sábio Fernando Pereira e do bom Alfonso Xavier Canosa, e na procura formal de um aforismo ao caso, eu arriscava-me ao traduzir retranqueiro: “Quem quiser pontificar, que seja a ponte”.

Interessante, por acaso, seria destacar o que nós entendemos vulgarmente por pontificar (Estraviz). Essa cousa a que são mais dados até que a fazerem a guerra e aos grandes jantares os mais poderosos dos príncipes celtas. Pois também a semântica de Pontífice e pontificar é acaída, (em latim: pontifex maximus, lit. “máximo/supremo construtor de pontes”), na Roma Antiga, designa o sacerdote supremo do colégio dos sacerdotes, a mais alta dignidade na religião romana; e mais tendo em conta que ben/pen, significa “o primeiro”, “o um” (que bem casa com o “primus inter pares” e o jeito antigo de eleger príncipe, rei ou papa) e que bont/pont é o étimo de pons/pontis.

E isso, que como pedra e palavra atirada não têm tornada: quem quiser pontificar que faça as pontes.

Compartilhar no facebook
Compartilhar no twitter
Compartilhar no google
Compartilhar no whatsapp
Compartilhar no email
Ernesto Vazquez Souza

Ernesto Vazquez Souza

Crunha, 1970. Licenciado em Filologia Hispânica (Galego-Português) 1993, e também Doutor nas mesmas áreas (2000) pela Universidade da Crunha. Pesquisou entre 1994 e 2000 pelos principais arquivos e bibliotecas da Galiza; e pelos de Madrid, Alcalá, Salamanca, La Habana, Montevidéu e Buenos Aires. Participou no Programa Intercampus (Pelotas Brasil-RS, 1995); foi professor visitante de Língua e cultura galega no Instituto Cervantes de Chicago (EE.UU) (1997), bolseiro da Deputação da Crunha (1997-98), leitor de Língua galega em Montevideu (R. O. Uruguai) no Curso 1998 (onde colaborou nas instituições da emigração e participou no Programa Radial Sempre em Galiza); durante os anos 2000-2001 foi bolseiro pesquisador de pós-doutoramento da UdC. A partir do ano 2001 mora em Valladolid, e trabalha como Bibliotecário nessa Universidade.

Especialista em história do impresso galego na etapa contemporânea, tem focado os seus contributos arredor do movimento das Irmandades da Fala, Ánxel Casal, o republicanismo, o laicismo e a maçonaria galega, e disto publicou algum trabalho sobre história, contexto político e cultural do livro galego das primeiras décadas do século XX. Sócio da Associaçom Galega da Língua e membro da Academia Galega da Língua Portuguesa; atualmente é o diretor do Portal Galego da Língua.

PGL.gal
Ernesto Vázquez Souza. Licenciado em Filologia Hispânica (Galego-Português)

Pendragão

O que mais interessa é essa figura de líder fulgurante na escalada ao poder, ambicioso, atrativo, sedutor e genial, implacável com os inimigos e que sabe domenhar os aliados com dura mão, génio na batalha e herói na luta. Mas que não sabe ser na vitória.

Ernesto Vázquez Souza. Licenciado em Filologia Hispânica (Galego-Português)

Bursário de figuras para educação de príncipes celtas

Parece ser norma e costume entre as nações celtas expulsar, não os mais belicosos, violentos, arriscados, revoltosos e selvagens dos seus filhos, quanto os que se assinalam, por diversa causa como conflituosos e destemidos (quer dizer, os subversivos para com essa delicada paz social consagrada em imobilismo e normalmente equivalente a dominação dos poucos sobre os muitos) e largá-los mundo adiante, em bandas, ou individualmente, a se desbravar, fazer experientes e aprender paciência.

Deixe um comentário

Deixe um comentário