Bursário de figuras para educação de príncipes celtas (Adro)
Ernesto Vazquez Souza
“Porque assy como en la bolsa hay muchos pliegues, assy en este tractado hay muchos obscuros vocábulos y dubdosas sentencias, y puede ser llamado bursario porque es tan breve compendio, que en la bolsa lo puede hombre llevar; ó es dicho bursario porque en la bolsa, conviene à saber, en las células de la memória, deve ser refirmado com grand diligencia, por ser mas copioso tractado que otros.”
Joan Rodriguez do Padrón
P
arece ser norma e costume entre as nações celtas expulsar, não os mais belicosos, violentos, arriscados, revoltosos e selvagens dos seus filhos, quanto os que se assinalam, por diversa causa como conflituosos e destemidos (quer dizer, os subversivos para com essa delicada paz social consagrada em imobilismo e normalmente equivalente a dominação dos poucos sobre os muitos) e largá-los mundo adiante, em bandas, ou individualmente, a se desbravar, fazer experientes e aprender paciência.
Este fenómeno tem uma dupla finalidade, primeiro fazer com que a violência, a fúria, a subversão da ordem se transformar na forja dos anos em algo útil por conta das experiências e do aprendizado, por outra que o processo aconteça fora, de jeito que as cabeças cortadas, as guerras, as políticas, as violências e mesmo os fracassos e até a morte dado o mau caso, aconteçam longe da comunidade e à conta das perdas doutros.
Não é má solução, especialmente quando se têm excedentes humanos e a sociedade originária está fragmentada em tribalismos altamente fidelizados, fiada em complexas redes de alianças e a paz sempre pendente de qualquer má resposta, piada descuidada, excesso de paixão, ciúmes, mau passo, impudência, ou pequena labaçada.
Deste jeito, se voltarem, ou volvem sábios e pacientes, com vontades de transmitir o aprendido em alheias terras; ou debilitados, sem mais vontade que viver em paz até a morte. O que é dizer em termos de utilidade: ou escarmentados ou exemplarizantes; ou, se sucederem, muito mais ricos, duros e poderosos. O que, de qualquer jeito e ainda a subversão que a sua volta produza na comunidade originária, é sempre bom, pois já na aliança, já na disputa pelo poder fica mais robustecida a elite dominante.
Se voltarem, ou volvem sábios e pacientes, com vontades de transmitir o aprendido em alheias terras; ou debilitados, sem mais vontade que viver em paz até a morte.
É por isto talvez a importância que apanha a incorporação de gentes, saberes, famílias, ferramentas, papéis, artefactos, modos, costumes vindos de fora como complementos renovadores da transmissão da memória, transformada deste jeito de experiência individual em coletiva.
Daí também os novos ditos célebres, os conselhos dos velhos, os poemas, os contos, a narração, as lendas que como ao acaso pingam cá e lá sempre para educação dos mais novos e também para conselho dos poderosos.
A literatura céltica, como outrora a nossa medieval e a do século XIX, com as suas alegorias elaboradas durante centos, talvez milheiros de anos de récita, adaptação, reelaboração é predominantemente sapiencial. Um Tanach disperso que não foi compilado, estudado, comentado e conformado como elemento conformante da cultura étnica ou de uma religião. Nesse sentido a Literatura moderna, a canonizada, a nacional, poderia funcionar como um compêndio de Novo testamento.
Tanto nos Mabinogi, como nos relatos e poemas mais antigos da Matéria de Bretanha, subsiste sob a formulação de contos, sonhos, poemas e relações episódicas uma fascinante coleção de exemplos do desconcerto do mundo, do absurdo dos governos, ou de como as cousas todas podem desaparecer arrastadas no mais inocente dos beijos, como tudo gira arredor de paixões, maus-entendidos, soberbas, das invejas, das traições mais absurdas.
Há muitos anos alguns amigos teimam em que escreva os pequenos contos com que os aconselho ou com que trato de os fazer refletir, especialmente quando debatem ou brigam entre eles, seguindo essa tradição de desunião e grupalismo tão estéril.
Proponho-me aqui ir, aos poucos, contando de episódios, feitos e figuras, carregadas de doutrina, aviso, conselho ou experiência para que os aprendizes de príncipes tenham onde ler, pois quem diz bursário, que é requinte de humorista por bolseiro, poderia ter dito sacola de peças do xadrez, baralho, livro de emblemas, apóphthegma ou ainda tarot.
Ernesto Vazquez Souza
Crunha, 1970. Licenciado em Filologia Hispânica (Galego-Português) 1993, e também Doutor nas mesmas áreas (2000) pela Universidade da Crunha. Pesquisou entre 1994 e 2000 pelos principais arquivos e bibliotecas da Galiza; e pelos de Madrid, Alcalá, Salamanca, La Habana, Montevidéu e Buenos Aires. Participou no Programa Intercampus (Pelotas Brasil-RS, 1995); foi professor visitante de Língua e cultura galega no Instituto Cervantes de Chicago (EE.UU) (1997), bolseiro da Deputação da Crunha (1997-98), leitor de Língua galega em Montevideu (R. O. Uruguai) no Curso 1998 (onde colaborou nas instituições da emigração e participou no Programa Radial Sempre em Galiza); durante os anos 2000-2001 foi bolseiro pesquisador de pós-doutoramento da UdC. A partir do ano 2001 mora em Valladolid, e trabalha como Bibliotecário nessa Universidade.
Especialista em história do impresso galego na etapa contemporânea, tem focado os seus contributos arredor do movimento das Irmandades da Fala, Ánxel Casal, o republicanismo, o laicismo e a maçonaria galega, e disto publicou algum trabalho sobre história, contexto político e cultural do livro galego das primeiras décadas do século XX. Sócio da Associaçom Galega da Língua e membro da Academia Galega da Língua Portuguesa; atualmente é o diretor do Portal Galego da Língua.
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