O direito da mulher de Partholon e várias outras instituições

Bursário (VI) - A rainha Dealgnaid

“And that, without deceit, is the first judgement in Ireland:
so that thence, with very noble judgement, it is the right of
his wife against Partholon.”

Leabhor Gabhála Érenn §30.

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A Irlanda, nos últimos séculos país de emigrantes, foi outrora um país de chegada e refúgio: de gentes e da cultura antiga. Uma terra próspera, de nova oportunidade, um Além mais após as Fisterras continentais e de aí e continuando por mar, uma base para mais distantes navegações. As diversas lendas, poemas dos bardos das idades, os contos dos seanchaí, a tradição, a historiografia e arqueologia modernas, referem o feito de que parte da população da ilha procede de várias camadas de invasões e migrações, maciças e continuadas, históricas e pré-históricas, das outras ilhas e terras, nomeadamente da Península ibérica e da Europa continental mais próxima, empurradas pelas guerras, as fomes, as perseguições, as inundações e as pestes.

Na adequação do material lendário à estrutura de eras e a narrativa imposta, primeiro pelo cristianismo, logo pela dominação normanda e depois a inglesa, a história da Irlanda foi-se configurando e conservando, em leixa-prem, matizada, entre duas forças institucionalizadoras: as da justificação do poder imposto e as da incorporação nele da legitimidade na sua ligação com uma tradição e elite anterior.

Resulta interessante, por isso, sempre, na justificação de práticas, costumes e legitimidades dinásticas e costumes mais modernos a permanência dos mitos e a transmissão na sua conservação e explicação. Este aspecto, formal e legalista, podemos reconhecê-lo também na história e na prática diária do poder na Galiza.

Entre as muitas adequações às que obrigou o conciliar a história bíblica com as histórias locais tão vivamente conservadas, a das Eras, as raças e as invasões configuram um tecido complexo, a meio caminho entre as confirmações arqueológicas e a simples invenção para justificação ou crítica da legitimidade do poder estabelecido. Neste sentido a história do segundo povoamento, a de Partholon, é muito interessante.

“Podemos rastrejar as origens da história do segundo povoamento, a de Partholon, arredor do século VII-VIII”

Podemos rastrejar as origens da história arredor do século VII-VIII, após a divulgação das obras de São Jerónimo e Isidoro de Sevilha, em que tanto bebem. Na Historia Brittonum, do século nono, em latim galês, os partolónios já figuram como os primeiros colonizadores da Irlanda. Também constam segundos, após o Dilúvio, no Leabhar Gabhála, com a sua narrativa a caminho entre tempos, fonte medieval (recolhida em forma escrita arredor do século XI) que pretensamente, repesca, atualiza e integra, numa sociedade em vias aceleradas de institucionalização cristã e feudal, elementos anteriores.

Daí já fica consagrada na narrativa das invasões e das eras da humanidade e será retomada e completada nos Foras Feasa ar Érinn (“Foundation of Knowledge on Ireland”), a recopilação nobilitadora e reivindicativa do século XVII de Seathrún Céitinn, fazendo parte, em destaque, e com inúmeras interferências, retificações, recortes e ramificações do folclore posterior e da moderna invenção da Irlanda.

Não se considera, a dos Partolónios, uma outra lembrança de uma migração pré-histórica real. Senão uma composição adequativa com três elementos: um mítico tradicional (arquétipos Lug e Artur), um estrangeirizante (nome não nativo que ecoa o mundo greco-latino com as suas tragédias e o belicoso e literaturizado Reino da Parthia com os seus cavaleiros) e um referente cristão (derivado de Bartholomaeus, descendente de Noé, das narrativas cristãs).

A cousa é que duzentos setenta e oito anos depois do Dilúvio, Irlanda foi povoada de novo, pelas gentes de Partholon vindas da Ibéria. Partholon (filho de Ser, filho de Sru, e assim com uma linhagem que remonta até Noé) fugira da Sicília grega, depois de assassinar o seu pai, que era rei lá, e a sua mãe e depois de ser derrotado pelo seu irmão. Amaldiçoado com o fado de que nada do que empreendesse teria bom fim, querendo fugir ao seu destino procura fortuna longe. Acompanhado das suas esposas, os seus filhos, as esposas destes, e uma hoste de mil seguidores (500 homens e 400 mulheres), recala nas costas da Irlanda, depois de vagar por sete anos.

Segundo as tradições, desembarcam, uma terça ou quinta, em Kenmare em West Kerry. Estabeleceram-se e edificaram um forte no esteiro do rio Erne, numa ilha, que mais tarde foi chamada Saimher, daí espalharam-se por toda a Irlanda.

Nesta expansão, o povo de Partholon, travou a primeira guerra na Irlanda, contra os míticos e titânicos Fomorianos, os que venceram após sete dias de batalha de habilidades mágicas e palavras retorneadas, caçaram por anos e relegaram para as periferias.

A chegada dos Partolónios.

“Partholon e as suas gentes não apenas povoariam a Irlanda como também transformariam a paisagem: foram os primeiros que traçaram caminhos, repartiram a terra, edificaram as primeiras casas e celebrarem as festas e assembleias”

Cumpre destacar que Partholon e as suas gentes não apenas povoariam a Irlanda como também transformariam a paisagem: foram os primeiros que traçaram caminhos, os primeiros que abriram os campos à cultura e que moveram as correntes dos rios; os primeiros que repartiram a terra, os que edificaram as primeiras casas, fortes, lugares e cidades, e também serão os primeiros a construírem as primeiras habitações, os primeiros a celebrarem as festas e assembleias, os primeiros a fabricarem caldeiros, os que travaran os primeiros duelos, os que estabeleceram a primeira garantia e o costume da hospedagem, os que destilaram a primeira cerveja, instituíram a adivinhação, o sacrifício e o culto, os primeiros que praticaram o fosterage (a base do sistema de educação e coesão nobiliárquica feudal), os primeiros que criaram o mercado. E com eles vieram a metalurgia, o ouro, o arado e os bois pela primeira vez à Irlanda.

Partholon, grande de corpo, de enorme força e de muitas habilidades, completa a sua figura mítica com a falta do olho esquerdo (mutilação compensatória e símbolo ritual de uma sabedoria adquirida pela experiência), que perdera nas lutas da Sicília. Como chefe de todos os chefess, destaca-se como organizador, e como mestre em todas as artes e os ofícios, o que sugere a sua identificação com Lug Samildánach (o de todas as habilidades), um dos principais deuses dos Tuath Dé Danann. Mas também, como líder de destacados nobres, cavaleiros e artesãos, fundador da prosperidade, de castelos, caminhos, de um reino e da ordem, é forte a sua identificação com Artur.

Partholon morreu 30 anos depois da chegada. Durante o seu próspero reinado e depois, estabeleceram-se alguns dos principais povoamentos, construções e topónimos do país e fixaram-se os costumes, o culto e as leis. Poderíamos dizer que foi o primeiro a fixar e estabelecer os pactos identificativos do Rei com a Terra. E que no constructo das Eras simboliza a fase agrária primitiva.

120 anos depois da sua morte uma pestilência misteriosa (o destino cumprido da tragédia grega), que se declarou no dia da Festa de Beltine (1 maio) dizimou, no decurso de uma semana, os agora 10.000 habitantes (5.000 homens e 4.000 mulheres), toda a sua nação. Porém, eis o privilégio do mito, o essencial das técnicas, das artes, dos costumes e das instituições, sobreviveu ao extermínio daquela primeira colonização.

Entre eles, podemos apontar algum dos mais singulares, permanentes, reivindicados e caracterizadores costumes e leis, e, também com eles, a formalização das legitimidades e direitos da classe dirigente.

‘Os Fomorianos ou os poderes dun mal estrangeiro no mundo’, de John Duncan

A questão é que se na história de Partholon convivem elementos cristãos e greco-latinos não é menos interessante destacarmos que aparecem também outros que se pretendem mais antigos (e que são divergentes da tradição clássica e judaico-cristã) em forma de reivindicação institucional e jurídica. O que não deixa de ser interessante, tendo em conta as mudanças que os contemporâneos, em questão de leis e direitos, estavam a viver tanto arredor do século XI, quanto no século XVII.

O sistema do direito tradicional irlandês, (e pelo que entendemos e nos permite inferir a concepção transmitida até ao presente, o comum céltico ou Atlântico) é um direito consuetudinário, com base em costumes e justificado em precedentes. Passado oralmente, de geração em geração, era administrado, após vinte anos de aprendizagem, por juízes (brehons), figuras de prestígio, e donos de grande sabedoria popular e rica palavra, cuja função principal era preservar e interpretar as leis e de arbitrar para a resolução de conflitos.

“O status da mulher no mundo céltico refere a protagonistas rainhas, deusas, guerreiras, druidas, sábias e juízas”

Já foi apontado o contraste do status da mulher no mundo céltico, referido em inúmeros episódios, figuras, elementos lendários, na presença protagonista de rainhas, deusas, de guerreiras, de importantes casas governadas por mulheres, e também de druidas, sábias e juízas. Dentro deste esquema o contraste maior com a tradição do mundo judaico-cristão-muçulmano, reside nos direitos, na participação na sociedade, na propriedade, na herança, no governo e na voz.

O direito antigo destacava que as esposas tinham direito de serem consultadas sobre todo e qualquer assunto. As mulheres podiam escolher ou aceitar com quem casavam, pois não eram consideradas propriedade do pai, do marido ou dos filhos, possuíam as suas propriedades e podiam mantê-las em caso de divórcio, que podiam solicitar. Também não estavam confinadas ao espaço familiar da casa, tinham voz nela e presença pública fora dela. Podiam ter acesso ao ensino, desenvolver as suas habilidades e conhecimentos e fazer parte em qualquer uma das profissões de prestígio (druidas, brehons, poetas, músicas e doutoras) e aumentar seu status social, fazenda, propriedades, poder e riqueza.

Por entanto, como na própria sociedade céltica dividida em estamentos, estas não eram situações nem direitos universais, mas da classe dirigente. Nas classes populares o status social da mulher vinha condicionado pelo do seu mais achegado parente masculino: pai, homem, filho. Isto permite conjeturar que talvez nas sociedades de base céltica, deveu ir se gradualmente, a começar pelas classes mais baixas, implantando gradualmente a lei e a moral cristã (judaica, romana, normanda), enquanto nas altas, regiram por mais tempo outras leis e normas de privilégio em conflito.

Desculpem o longo périplo legal. Um dos elementos mais característicos do recitado da história do Partholon é a insistência em que algum entre os seus foi primeiro a fazer, trazer, estabelecer, a empregar na Irlanda, tal objeto, tal construção, tal costume, tal elemento de cultura. (Diga-se de passagem, que esse destaque de ser o primeiro, é algo muito característico na escrita de Manuel Murguia como elemento legitimador). E, no centro da história da vinda dos Partholonios, figura o popular episódio, repetido, tópico, tomado a burla ou para condenação da perversidade natural e etc. das filhas de Eva, do primeiro adultério da Irlanda, do primeiro ataque violento de ciúmes, e do primeiro julgamento de um brehon. E, talvez, algo mais.

Tuan mac Cairill, filho do irmão de Partholon Sharn, sobrevivente a espidemia.

Dealgnaid (Dalgnat ou Dealnagt), desta volta sim conhecemos o nome e podemos dizer de novo a história, era mulher de Partholon e a rainha. Farta das ausências, em viagens, no governo, e em intermináveis caçarias e pescarias, do seu home, seduziu um dos principais criados de Partholon, de nome Todhga ou Topa. Deitou-se com ele, e depois, com a sede, beberam num raro copo ou estranho tubo de ouro, do vinho ou da cerveja reservada do Rei.

Ao voltar este à casa, e ir beber da sua cerveja, notou alguma cousa diferente (os poemas contam mais líricos que um demo negro o fez perceber, ao colocar os seus beiços no metal, o sabor de Dealgnaid e de Topa) e em suspeitas do adultério começa uma briga com a mulher, que não o nega. O rei declara-se agravado, traído, fortemente ofendido e exige uma restituição.

“O rei declara-se agravado pela infidelidade de Dealgnaid e exige restituição. Ela replica-lhe que se alguém tem de protestar e sentir-se agravada e ofendida é ela”

Porém Dealgnaid replica-lhe tranquilamente, que se alguém tem de protestar e sentir-se agravada e ofendida é ela, que não tem nunca o seu homem por perto para o desfrutar. E que se há que procurar um culpado do acontecido é ele quem tem de o ser, que deixar sozinha uma casada é como deixar um tarro de mel perante uma mulher, leite acarão de um gato, ferramentas do trinque à vista de um bom artesão, lambetadas perto da boca de um cativo… e esperar que não aconteça o que tem de acontecer.

Levado da ira, Partholon, bate em Saimher, o cachorro de estimação de Dealgnaid, que se achegara, enquanto brigavam, a brincar com ele, e faz, com tanta raiva que mata o cãozinho. Depois, vai na procura de Topa, que fugira, e mata-o às espadeiradas.

Dealgnaid reclama, pois Partholon, rei e tudo, tomara a justiça pela mão e agira com uma violência exagerada e desnecessária, ocasionando à rainha um agravo e um dano maior do que ele sofrera.

E após a arbitragem de um brehon (as bases da justiça céltica mais que punir – aquele absurdo de olho por olho – preferiam reparações e satisfações), que se considerou justa e de ditame preciso, outorgaram as compensações de danos à esposa, pois se o criado era dele, o cão era dela.

Se, como conjunto, a história de Partholon é um construto justificativo em fusão entre um passado remoto e a reconstrução medieval cristianizante, é importante destacar que a história de Dealgnaid (um arquétipo ou variante da posterior recristianizada de Artur, Lançarote e Genebra) favorece, e talvez reivindique, o sistema legal tradicional, o direito da mulher no esquema institucional das Brehon laws, em exemplo. E fá-lo deixando memória também do primeiro julgamento, da primeira sentença que houve na Irlanda e, portanto constituindo, na raiz da legitimação, não apenas um precedente, quanto o primeiro precedente.

Se se divorciaram, ou a que acordos chegaram depois mais história não encontrei. Agora, como restituição aos danos, Dealgnaid ganhou e ficou a viver na ilha que fora o primeiro forte, residência e antiga capital, no esteiro do Erne. E renomeou-a Inish Saimher, em recordação do seu cadelo, e do seu direito, topónimo e direito que se conservou com o conto até ao dia de hoje.

Valladolid, 28 de novembro.

Ernesto Vazquez Sousa

Ernesto Vazquez Sousa

Crunha, 1970. Licenciado em Filologia Hispânica (Galego-Português) 1993, e também Doutor nas mesmas áreas (2000) pela Universidade da Crunha. Pesquisou entre 1994 e 2000 pelos principais arquivos e bibliotecas da Galiza; e pelos de Madrid, Alcalá, Salamanca, La Habana, Montevidéu e Buenos Aires. Participou no Programa Intercampus (Pelotas Brasil-RS, 1995); foi professor visitante de Língua e cultura galega no Instituto Cervantes de Chicago (EE.UU) (1997), bolseiro da Deputação da Crunha (1997-98), leitor de Língua galega em Montevideu (R. O. Uruguai) no Curso 1998 (onde colaborou nas instituições da emigração e participou no Programa Radial Sempre em Galiza); durante os anos 2000-2001 foi bolseiro pesquisador de pós-doutoramento da UdC. A partir do ano 2001 mora em Valladolid, e trabalha como Bibliotecário nessa Universidade.

Especialista em história do impresso galego na etapa contemporânea, tem focado os seus contributos arredor do movimento das Irmandades da Fala, Ánxel Casal, o republicanismo, o laicismo e a maçonaria galega, e disto publicou algum trabalho sobre história, contexto político e cultural do livro galego das primeiras décadas do século XX. Sócio da Associaçom Galega da Língua e membro da Academia Galega da Língua Portuguesa; atualmente é o diretor do Portal Galego da Língua.

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