"Discursos modernizadores causaram um trauma geracional ao dissociar a noção de progresso da identidade galega"

ENTREVISTA | Helena Miguélez-Carballeira

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Antom Satos | Lugo | marzo 2021. Miguélez-Carballeira formou-se como Filóloga na Universidade de Vigo e doutorou-se na Universidade de Edimburgo, em Escócia . Logo, já na emigraçom galesa focou o seu interesse nos estudos culturais, afundando na construçom das imagens dominantes sobre o nosso país e a sua resistência. O seu livro Galiza, um povo sentimental? (publicado em 2014 por Através e em 2020 na sua terceira ediçom) abordou criticamente alguns dos elementos considerados intocáveis na narrativa galeguista, e fijo-o com vontade de sugerir que existírom também ‘um contradiscurso e umha outra prática realmente empoderantes’. Com ela falamos de naçom, género, e possíveis horizontes emancipatórios para os discursos sobre a identidade galega.

Como vinculas as tuas inquedanças intelectuais às tuas origens? Pensas que há algo na tua biografia que te oriente à questom da identidade galega que marca as tuas pesquisas?

A minha origem social é urbana, mas híbrida e cheia de matizes, e acho que isto ia condicionar o que véu depois. Tanto o meu pai como a minha mae som absolutamente rurais, conhecérom-se trabalhando na emigraçom catalá, da que voltárom quando meu pai tivo notícia dumha oferta laboral na Citroën de Vigo. Logo, eu crio-me nesse ambiente de subjectividade rural, mais que tenta adaptar-se a um contexto urbano e obreiro. Percebo desde nova o sentimento de complexo na minha família, e em famílias como a minha, malia a que nom gosto demasiado da palavra complexo para me referir a isto. É, mais bem, um esgazamento. Persiste no meu entorno familiar a ideia de que progressar significa deixar atrás todo o que os meus pais e avós eram, adaptar-se a umha nova vida nas cidades, seguir o caminho que os seus filhos houvemos de seguir, pois nom parecia haver volta cara atrás.

E como foi?

Eu fum umha meninha dum bairro periférico composto de casais semelhantes, íamos à aldeia quando podíamos, e os nossos veraos eram na Terra Cha e em Melide, comarcas natais de minha mae e meu pai respeitivamente. Educárom-me em castelhano, como era o habitual, e eu na primeira mocidade começo a despertar a questons coleitivas relacionadas com a Galiza. Passo a falar galego, num grupo de amigas do liceu, e tenho umha certa consciência, mas é em certo modo umha consciência pre-política. O meu contacto já com subjectividades militantes é posterior, dá-se na emigraçom no País de Gales. Alô, curiosamente, entro em contacto com pessoas implicadas dum ponto de vista militante nas esquerdas independentistas do Estado espanhol, e isto é um dos eventos mais transformadores da minha vida. Passei de sentir-me simplesmente galeguista a conhecer pessoas que apostavam em mudar a realidade em chaves políticas e materiais.

A imensa maioria da produçom intelectual do galeguismo e do nacionalismo está concebida em tom apologético, isto é, cria-se com a intençom de vindicar pessoas ou episódios históricos e logo espalhá-los. Na tua obra a vontade é mui distinta: vindicar a identidade galega lendo-a mui criticamente, e mesmo fazendo abanar certas figuras. Por que essa focagem?

Penso que tem a ver com a minha própria trajetória académica. Quando eu, na fase de investigaçom para o livro, lim o corpus documental e literário galeguista, estava a lê-lo pola vez primeira; os meus estudos som de Filologia Inglesa, nom estudei nem Galega, nem sequer Espanhola. Eu formara-me na rama de linguística e traduçom, e logo já como parte do doutoramento na Escócia, dou com todo o campo da teoria crítica literária, em particular a escola poscolonial. Lembro-o bem, foi ao ler a obra da escritora catalá Mercé Rodoreda e fazendo umha tesinha sobre as traduçons ao inglês que existem dos seus textos, que entrei em contato com a ideia de que o campo literário é, sobre todo, um terreno atravessado por ideologias em disputa. Logo, doutorando-me em Estudos Hispánicos, formo-me no campo dos estudos poscoloniais, e em outras teorias críticas pos-estruturalistas da segunda metade do século XX. É assim que, no meu caso, veu primeiro a formaçom em todo o aparelho crítico, e logo o contacto com o canon literário galego, que nom lim com particular reverência, nem com nenhuma vontade de reclamar o seu lugar na história. Ao começar a ler os autores galegos, para mim resultou inevitável fazê-lo desde uma olhada crítica cara aos estereótipos repetidos que ateigavam os textos.

No teu trabalho incides em que as imagens dominantes conformadas sobre a Galiza som imagens debilitantes colectivamente, com grandes efeitos políticos. Podes desenvolver esta ideia?

Quando se organizaram as apresentaçons do livro na Galiza, no ano 2014, nos colóquios posteriores, essa era a pergunta recorrente: que tenhem de mau as imagens sentimentais sobre o país? E que resulta negativo o sentimental, ou sermos um povo de morrinhentos em por si? Mas o livro nom diz exatamente isso: nom afirma que a nossa configuraçom como país sentimental nos enfraqueça de seu. O que afirma é que a ideia da naçom sentimental articula um discurso colonial-orientalista sobre a Galiza, seguindo a nomenclatura de Edward Said, num momento histórico no qual a lógica binária da divissom sexual já colocava o sentimento no lugar do desvalorizado, por estar associado com o feminino. É precisamente por isso, interesseiramente, polo que se escolhe a categoria do sentimental para vinculá-la à Galiza desde os centros de poder da nascente instituiçom historiográfica, que a finais do século XIX tivo que entrar em lida com a teoria das origens celtas da Galiza, dando lugar a uma verdadeira batalha cultural entre os historiadores estatais e os regionalistas. Poderia ter havido outras utilizaçons do tropo do sentimental? Poderia, há indícios disto em certo celtismo primigénio, em autores como Verea e Aguiar, logo Pondal, no que aparece outro tipo de sentimentalismo celta, mais relacionado com a valentia, o talante guerreiro, a insurgência. Ora, o que acontece na Galiza tem um sentido inverso, e a grandes traços é o que acontece em todos os países das periférias celtas europeias (em Gales ou a Irlanda, com certeza; nom tanto na Escócia, cujo imaginário nacional moderno estivo sempre mui vencelhado à ideia duma virilidade nacional forte). Desde as instâncias do poder, desde as capitais dos Estados, desde as academias de história, considera-se necessário secundarizar essas identidades celtas periféricas, e os novos historiadores regionalistas que lhe dam suporte. A estratégia que se adota e promove desde o poder é a seguinte: imos permitir a existência de certo discurso sobre a diferença nacional, mas ligado sempre a valores negativos dentro da lógica da divisom sexual ao uso. Em certa medida, essa estratégia tem tal sucesso que logra permear à dos intelectuais construtores de institucionalidade cultural pretendidamente contra-hegemônica, é dizer, os próprios galeguistas. Lembremos a modo de exemplo, o conhecido discurso de Manuel Murguia nos Jogos Florais de Tui, onde qualifica o galego como língua essencialmente feminina.

A filóloga viguesa Helena Miguélez-Carballeira. @Andrés Fraga (2014)

No meu caso, veu primeiro a formaçom em todo o aparelho crítico, e logo o contacto com o canon literário galego, que nom lim com particular reverência (…) Ao começar a ler os autores galegos, para mim resultou inevitável fazê-lo desde uma olhada crítica cara aos estereótipos repetidos que ateigavam os textos.

Num momento em que o movimento galego se decanta para a política, em tempos das Irmandades, os próprios protagonistas parecem reconhecer em si mesmos o lastre da excessiva dedicaçom culturalista e da falta de sentido prático, e pretendem superá-lo. Até que ponto o conseguírom?

É muito interessante comprovar como, a medida que eles ponhem em andamento o movimento nacionalista, som quem de fazer umha diagnose em tempo real dos perigos que comportava a ideia duma identidade nacional sentimental para a construçom duma institucionalidade cultural galega forte, e mesmo para um movimento com clara vocaçom política. Nom esqueçamos que nesta superaçom do sentimentalismo está em jogo, entre outras cousas, o status da língua. Porque o que estám a dizer os homens das Irmandades com a sua prática é que o galego nom é apenas um idioma para a poesia. O mesmo afirmam os promotores de Nós ao validarem e utilizar o galego para o ensaio ou para a prosa narrativa; trata-se de dar uma batalha cultural pola idoneidade do galego como língua culta. Logo, o próprio Manifesto Mais Alá de Manoel António e Cebreiro é um testemunho evidente de vontade de superaçom do paradigma do regionalismo cultural sentimental. Esta é a pugna ideológica central do nosso sistema cultural, que hoje já foi trasladada do entorno estritamente literário a um panorama cultural trans-média.

De todos modos, se imos às fontes de movimentos como o arredismo, ou o movimento obreiro, vemos umha e outra vez esta acusaçom ao galeguismo de estar hipertrofiado intelectualmente, de ter certa alérgia à acçom, de nom superar certos cenáculos…

Si, sei dessa tradiçom. Porém, o meu trabalho abordou como se construe o discurso da Galiza sentimental e, ainda que si os cita, nom se dedicou a analisar os contradiscursos, que com efeito existem, e possivelmente dariam para esse outro livro.

Cal é o sustento do discurso nacionalista no início?

O que detetei na pesquisa é que durante as primeiras décadas do século XX o nacionalismo tenta vincular-se a um discurso de maior firmeza, afirmaçom ou racionalidade, que com certeza esta geraçom teoriza como uma evoluçom cara a masculinizaçom do movimento. Isso curta-se radicalmente em 1936. Em plena ditadura, a única estrutura galeguista que sobrevive no país, a única estrutura que de algum jeito permite ser galeguista, e a que se acomoda ao marco culturalista-identitário que permitia a celebraçom da identidade sentimental galega por meio dos discursos do saudosismo ou o rosalianismo. Por isso as atividades e a forma de institucionalidade cultural que assentou, por exemplo, o núcleo conhecido como ‘Galáxia’ nom comportava estritamente um risco político, porque na própria cerna ideológica do projeto estava a associaçom da identidade galega com o próprio valor da apoliticidade, mui cotizado no franquismo. Nos textos canónicos de Ramom Pinheiro se afirma de maneira explícita que o galego adotava de seu a atitude do sofrimento passivo, e que o nosso era um país nom dado à insurrecçom.

Que peso histórico tivo essa nova afirmaçom da sentimentalidade galega na segunda metade do século XX?

Um peso enorme. Tinha já umha tradiçom por trás bastante velha, mais é sobre esta estrutura, quer discursiva, quer material, sobre a que se artelha todo o entramado cultural da Galiza autonómica. Essas imagens da Galiza saudosa ou da Galiza feminina que produzem os intelectuais, a direita autóctone vai-nas utilizar com inteligência, com fins direitamente políticos, comerciais ou empresariais, como vemos repetidamente nas campanhas de Gadis e Abanca, ou naquelas relacionadas com o Xacobeo ou com a Galiza como destino turístico global. É uma política de (auto-)representaçom que mesmo permeia certo cinema galego, e por descontado as séries televisivas estatais e internacionais que tenhem a Galiza como paisagem de fundo. Aproveita-se um discurso identitario nacional muito assentado para a promoçom de projetos neocoloniais, extractivistas ou já direitamente externalizados, com fraco benefício a longo praço para o grosso da sociedade galega. Só para as elites que a regem.

Que resposta isso provoca?

Coloca-nos num dilema interessante e bem complexo. Porque numha lógica de resistência, há quem diga que essa exaltaçom do imaginário sentimental sobre a Galiza é puro discurso colonial, entom nom há mais que deitá-lo ao lixo. Mas também existe a opçom de dar a batalha nesse terreno, de apropriar-nos dessas imagens e dar-lhes a volta, enquadrá-las num relato emancipatório que vaja na direcçom do empoderamento, do orgulho nacional e de classe: cara à organizaçom política da raiva que nasce quando uma comunidade se reconhece na posiçom de quem foi historicamente espoliado. Eu som mais partidária desta segunda linha, porque do contrário nom imos dar rachado umha associaçom muito perversa e mui bem ensamblada, reforçada por décadas de franquismo e regime autonómico que apostarom por uma estratégia para a hegemonia cultural a todas luzes ganhadora. Que conseguirom na Galiza a ditadura franquista e os discursos modernizadores da autonomia e da integraçom Europeia? Fazer que a sociedade galega quase no seu conjunto dissociasse a identidade galega da noçom de progresso, dando lugar a um trauma geracional cujos efeitos ainda nos envolvem. Dixo-se-nos, todo bem, podedes ir para a frente e ‘progressar’, mas em troca de abandonar todo o que sodes e amades: a vossa língua, a vossa casa, as vossas terras e animais, os vossos jeitos de viver e celebrar a vida em comunidade. Mas acho que entramos num momento histórico em que podemos reconsiderar todos aqueles traços utilizados polo discurso do que se chamou sentimentalismo galego, e lê-los como elementos duma outra ideia de progresso: o que o mundo há de precisar para sair da crise civilizatória que se avizinha. Mais para isto cumpre transformar a elegia constante polo que se foi, em raiva a quem nos fijo divorciar a nossa identidade do valor da modernidade. E estamos em boa situaçom para fazê-lo, pois existem ainda indígenas daquela forma de ser, e gente que conheceu de primeira mao as formas de vida e economia comunitárias galegas que chegarom quase intatas até a nossa contemporaneidade. A essa forma de ser cumpre fazer-lhe muito oco, sem deixar que outros poderes lesivos para os nossos interesses como comunidade a patrimonializem.

Essa exaltaçom do imaginário sentimental sobre a Galiza é puro discurso colonial (…) existe a opçom de dar a batalha nesse terreno, de apropriar-nos dessas imagens e enquadrá-las num relato emancipatório que vaja na direcçom do empoderamento, do orgulho nacional e de classe: cara à organizaçom política da raiva que nasce quando uma comunidade se reconhece na posiçom de quem foi historicamente espoliado.

Um outro aspeto essencial da ‘Galiza sentimental’ foi a utilizaçom de motivos e valores alegadamente femininos mas, a um tempo, o quase nulo protagonismo das mulheres no movimento cultural e político. Pretendes na tua obra umha vindicaçom ou resgate de mulheres silenciadas?

Ao me cingir no livro ao eido da história literária galega, o canon que descobrim, nem cumpre dizê-lo, foi patriarcal. Eis o meu interesse por estudar os textos de González Besada, de Carré Aldao ou de Couceiro Freijomil, que som os que estabelecem o canon e marcam os critérios definitórios do que podia historiar-se em cada período como literatura galega, relacionando-a com os traços duma identidade sentimental. Logo, o meu interesse particular nesta obra nom era a recuperaçom de vozes das mulheres, ainda que com efeito algumhas aparecem, e bem valiosas: particularmente as de Francisca Herrera, Maria Xosé Queizán, ou Lupe Gómez, cujos textos literários, cada um no seu momento histórico, tentam arrepor-se ao do discurso do sentimentalismo galego; sobre todo no tocante a como se moralizava sobre o que devia ser o modelo de mulher galega. Obviamente, o resgate de voces de mulheres é necessário, à margem dos conteúdos desta obra. E parte do feminismo do país tem abordado esta tarefa em profundidade. Estou a pensar na revisom da nossa história recuperando às mulheres, feita por investigadoras como Aurora Marco; ou no trabalho feito polos movimentos e centros sociais, o portal Galiza Livre, e mesmo parte da institucionalidade cultural oficial, como o Álbum de Mulheres do Conselho da Cultura Galega. Porém, tenho pensado muito nisso, e acho que cingir-se à recuperaçom e visibilizaçom das trajetórias de mulheres que tentarom incidir com o seu trabalho numa esfera pública que as eludia nom abonda, pois as iniciativas deste tipo nom tensionam o poder todo o que nos é preciso.

Que facer?

Se calhar temos que focar o nosso olhar cara as mulheres anónimas, e entender que o que se fijo entre nós, particularmente na ditadura, foi lançar contra elas umha estratégia de despojo. Lembremos que todas as formas de cooperaçom familiar e comunitária tradicional galega que existiam até há bem pouco passavam polo corpo e trabalho das mulheres. Inspirada polos estudos decoloniais feministas da América Latina, estou a começar a investigar a história cultural galega a través do fenómeno que algumhas sociólogas chamam fuga de cuidados, que é o que acontece numha comunidade quando as mulheres migram em massa, moitas vezes para irem cuidar crianças doutras mulheres noutras geografias, deixando atrás os filhos e filhas próprias, cujos cuidados ficam em maos da filha maior, dumha tia, duns avôs, ou do homem próprio. Esta experiência marcou milhares de famílias galegas na jeira migratória da segunda metade do século XX e tem um testemunho literário na novela Adios, María (1971) de Xohana Torres e na poética de Luz Pichel. Mais é uma dimensom da nossa experiência coletiva recente que nom está mui teorizada, nem pescudada desde a história social. Cuido que estamos na hora de valorizar experiências coletivas coma esta e, com ela, construir novas épicas nacionais, que nom podem ser outra cousa que épicas feministas.

Helena Miguélez-Carballeira. @Andrés Fraga

Inspirada polos estudos decoloniais feministas da América Latina, estou a começar a investigar a história cultural galega a través do fenómeno que algumhas sociólogas chamam ‘fuga de cuidados’, que é o que acontece numha comunidade quando as mulheres migram em massa, moitas vezes para irem cuidar crianças doutras mulheres noutras geografias, deixando atrás os filhos e filhas próprias.

Atendendo ao sesgo patriarcal dos seus estudos e também dos seus comportamentos pessoais, abordas um exame muito crítico dum certo mito do galeguismo, Carvalho Calero. Mas é doado concluir que, se partimos do rigorismo moral mais exigente, nenhum persoeiro histórico ficaria em pé, nem os mais irrebatíveis. Foi a tua intençom derrubar qualquer mito?

Nom propriamente, ainda que a análise das construçons mitológicas é, por necessidade, umha das funçons duns estudos culturais críticos com o poder. É claro que nenhuma cultura existe sem mitos, mais a mim a repetiçom deste lugar comum nom me interessa como projeto. Algumha gente tem-me mostrado com preocupaçom essa mesma questom que tu referes. Fazia falta arejar todas as misérias do homem?, vinham a perguntar. Mais a minha pretensom era demonstrar que o corpus de pronunciamentos sexistas que aparecem na obra carvalhocaleriana nom aconteceu no baleiro, nom eram produto da excecionalidade, nem apenas misérias ou deslizes isolados dum homem. Quando na sua História da Literatura Galega Carvalho escreve aquela frase sintomática, “Rosalia, eis o homem”, podíamos, abofé, deixá-lo passar. Mas em rigor, desde uma praxe marcada pola teoria feminista, nom havia jeito de obviá-lo, pois revela com absoluta nitidez o traçado patriarcal da institucionalidade cultural galega. Por isso eu saliento que nom me interessa apenas analisar os textos de Carvalho Calero, senom o que chamamos ‘carvalhocalerismo’, que é umha cultura discursiva, alem de um jeito de entender (e de explicar-lhes aos demais) algumas das pugnas ideológicas centrais do galeguismo do século XX, incluídas as que se desenvolverom no período autonómico. Por isso nom é importante só retornar aos textos de Carvalho e sinalar que, por exemplo, nalgum deles se compara o bilinguismo com a bigamia (onde uma das línguas faladas é, como diz Carvalho, umha concubina de inferior rango). É importante também salientar que no 2010 se volve a recolher este texto numa antologia encomiástica, e que isto acontece mais outra vez noutra escolma publicada en 2020. Este fenómeno é, como mínimo, sintomático de que existe um interesse claro em que a cultura discursiva que chamamos carvalhocalerismo permaneça intacta no tempo. Por tanto haverá quem tira benefício de que assim seja. É deste jeito como se protegem os mitos dos ataques proferidos por aquelas que nom tenhem parte nessa estrutura de sentido e de interesses.

Existe um interesse claro em que a cultura discursiva que chamamos ‘carvalhocalerismo’ permaneça intacta no tempo. Por tanto haverá quem tira benefício de que assim seja. É deste jeito como se protegem os mitos dos ‘ataques’ proferidos por aquelas que nom tenhem parte nessa estrutura de sentido e de interesses.

Poderia-se escrever umha obra como a tua, em geral irreverente com as estruturas culturais autonómicas, dependendo dumha instituiçom galega?

Eu formei-me academicamente graças às bolsas que ajudavam a gente da minha classe social a seguir com estudos de posgrao no estrangeiro e, ao acabar a tese atopei trabalho direitamente na universidade galesa. A posiçom desde a que escrevo é, portanto, a dumha pessoa galega emigrada cuja preparaçom como investigadora académica foi fornecida, sobre todo, polo Estado e Universidade britânicos. Porém, o meu caso nom tem nada de extraordinário, pois há muitíssimas pessoas galegas formadas academicamente na diáspora, cujas voces e trabalho intelectual a instituiçom cultural e universitária galega nom reflete nem absorbe facilmente. Mais trata-se dum capital humano e intelectual que faz parte constitutiva do marco autonómico, um marco que transformou aos filhos e netos de labregas, conserveiras e trabalhadores de Citroën em universitários, mais nom para incorporá-los plenamente á classe académica e intelectual do país, que já ficava ocupada polos filhos doutros e tem uma fraca capacidade para a renovaçom geracional. Com todo, acho que a produçom intelectual, artística ou cultural desta geraçom tem uma qualidade própria: a qualidade dos que nom tenhem nada a ganhar (e nada a perder) na instituiçom cultural galega autonómica.

Mas ti tes uma afiliaçom institucional à universidade…

A minha postura, porém, nom está absolutamente à margem, e é, de facto, híbrida. Eu tenho uma afiliaçom institucional à Universidade de Bangor, onde também se estabeleceu desde o 2006 o Centro de Estudos Galegos em Gales, financiado pola Xunta de Galicia. Como tal, podo participar em redes académicas (congressos, projetos de investigaçom, grupos de trabalho internacionais) que funcionam como fator legitimador das minhas intervençons numa esfera pública que tende a destacar o fator de autoridade académica e que, doutro jeito, me estaria provavelmente vedada. Ponho por exemplo a minha participaçom nalguns debates mediáticos do país, quando algum cabeçalho de imprensa me pede artigos de opinióm e participaçom em controvérsias. Dalgum modo, tenho foros abertos pola minha afiliaçom a umha universidade, e ao mesmo tempo, podo manter umha independência de critério estrita. Fago todo o que está na minha mao por manter-me neste lugar, para mim mui valioso. Mais tampouco quero banalizar ou celebrar a minha condiçom de emigrada. Neste ano, por mor do covid, estou a viver logo de vinte anos no lugar onde nasci e som mui feliz. Nestes meses decatei-me do grande custe pessoal que supom a emigraçom para mim.

No limiar à terceira ediçom do teu livro citas e vindicas figuras que consideras básicas para erguer um imaginário nom debilitante, figuras que consideras secundarizadas ou distorcidas pola narrativa dominante, e que seriam o contraponto do que analisas na obra: aí estám Francisco Añón, Benito Vicetto, Rosalia de Castro, Manoel António, Johám Jesus Gonçález…por que os escolheche?

Som figuras demasiado dispares como para dizer que partilham um traço comum, nom seria rigoroso. O que pretendia afirmar é que, além do tipo, existe um contratipo, e esse contratipo é matéria para um outro trabalho. Mas si, aí aparecem, por exemplo, pessoas que disputárom a Murguia o primeiro modelo para a instituicionalizaçom do galeguismo (como Vicetto ou Lamas Carvajal) e que fôrom derrotadas. Ou exemplos como os de Johán Jesus Gonçález, que além de teorizar a questom nacional e social galegas como inseparáveis, encarnou o modelo de intelectual para quem nom existe a reflexom e produçom culturais sem uma forma de acçom política que comprometam o próprio corpo. As pessoas que militam nos movimentos independentistas do Estado espanhol, que som intelectuais de acçom em toda regra, sabem bem o que isto significa.

A entrevistada

Helena Miguélez-Carballeira

Helena Miguélez-Carballeira

Vigo, 1978. Licenciada em Filologia Inglesa pola Universidade de Vigo, doutorada em Estudos Culturais pola Universidade de Edimburgo, Catedrática de Estudos Hispánicos na Universidade de Bangor, coordinou o volume A Companion to Galician Culture (2014). Em 2019 foi aceite no Gorsedd Beirdd Ynys Prydain, orde bárdica que honra as pessoas que contribuírom significativamente para a cultura galesa. Colabora com vários meios de comunicaçom do nosso país.

Outras entrevistas

A entrevistada

Helena Miguélez-Carballeira

Helena Miguélez-Carballeira

Vigo, 1978. Licenciada em Filologia Inglesa pola Universidade de Vigo, doutorada em Estudos Culturais pola Universidade de Edimburgo, Catedrática de Estudos Hispánicos na Universidade de Bangor, coordinou o volume A Companion to Galician Culture (2014). Em 2019 foi aceite no Gorsedd Beirdd Ynys Prydain, orde bárdica que honra as pessoas que contribuírom significativamente para a cultura galesa. Colabora com vários meios de comunicaçom do nosso país.

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