"A fantasia de parte da esquerda já nom é tomar nenhum poder, nenhum lugar físico, senom a rede"

ENTREVISTA | Guillermo Rendueles

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Antom Santos | Lugo | 4 de xaneiro de 2020. “Nom imos superar o malestar psicológico difuso com pílulas nem com redes sociais virtuais”, diz Guillermo Rendueles, umha das vozes mais autorizadas da psiquatria crítica desde há várias décadas; combinou a militáncia política e sindical com um importante contributo teórico ao estudo do malestar íntimo na nossa sociedade, que nos últimos tempos parece alcançar níveis de autêntica pandemia. 

Fala-nos dos teus primeiros interesses pola psiquiatria. Tenhem a ver com algumha consciência política, ou os caminhos da militáncia e a medicina marcham arredados?

Há um vínculo muito claro entre ambos os dous. Nos meus tempos de adolescência eu orientava-me à Filosofia, muito influenciado polo magistério de dous professores libertários que me marcaram profundamente: José Luis García Rúa, um histórico da CNT, e logo Agustín García Calvo. Meu pai, que era economista, dizia-me que a Filosofia era um conto, que cumpria umha disciplina que tivesse os pés na terra. É assim que me decanto para a Medicina, mas com a vista posta na Psiquiatria, a modo de soluçom de compromisso entre os meus interesses e esta exigência. De muito novo, caira nas minhas maos um livro de Stefan Zweig sobre a psicanálise, Os médicos da alma, que me influira poderosamente. Logo vivim um momento de grande decepçom. Estudei em Salamanca, e ali entro em contacto com a psquiatria franquista, dirigida por Vallejo Nájera, um militar, estritamente um fascista, que analisava aquilo dos males da alma baseando-se em Tomé de Aquino. Para darmo-nos de conta do que estamos a falar, pensemos que López Ibor, a olhos desta ortodoxia, passava por ser um progressista, e de facto Nájera pressionou Franco a favor do encarceramento de López Ibor.

Qual foi tua primeira experiência com pacientes em um hospital psiquiátrico?

Puidem superar esta pequena crise nas práticas porque fum enviado a um manicómio, dependente da Clínica Universitária de Salamanca. Aqui acontece umha cousa muito curiosa, porque eu estivera preso por mor dumhas mobilizaçons no estado de excepçom de 1969, e ao chegar a aquele encerro psiquiátrico tenho umha sensaçom puramente física, que ainda nom verbalizo. É que o cheiro recorda-me à prisom. À aquele cheiro das cozinhas da prisom… logo descubro que há todo um leque de trucos dos internos para estar em boa relaçom com a administraçom, para evitar puniçons… vaia, que vejo claramente que se trata dumha instituiçom total, dum regime de encerro, e estimula-me poder mudar as cousas de algum jeito, contribuir a isto com o meu labor profissional.

Suponho que dessa crítica à antipsiquiatria, da que participas, há um pequeno passo.

Si, nom demoro em mover-me nessas coordenadas. Mas antes de entrarmos de cheio no movimento antipsiquiátrico, acho que há que falar da conflitividade da psquiatria naqueles tempos tam convulsos, que começa por ser umha conflitividade apenas laboral. Ao rematar Medicina, entro a trabalhar ao Hospital de Oviedo, que é um centro flamante, criado por um tecnocrata, segundo o que estava em voga na época. O que se pretendia, em vários pontos, era copiar o modelo anglosaxom, tentativa que também se dá em Conxo, por exemplo. Traem-se chefes formados fora, e cria-se um hospital com umha grande impronta norteamericana.

“Aqui decide-se manter os doentes vivos. Tratava-se de instituiçons de orde que disciplinavam e recolhiam gentes muito diversas. Havia exemplos que confirmavam a nossa aposta por fechar ou reduzir no máximo os manicómios.”

Como era o trabalho lá?

Naqueles primórdios, os residentes nom somos considerados trabalhadores, mas bolseiros. Isso leva-nos a um duro conflito profissional por transformar o regime de exploraçom extrema, em que recebemos um salário ridículo, supostamente compensado por nos fornecerem comida e alojamento. Nós pretendíamos transformar a nossa condiçom no que hoje som os MIR, para entendermo-nos, e esta reivindicaçom fai-se massiva. Pouco ideológica, de partida, mas importante em volume, ao unirem-se vários centros hospitalários de outros pontos. Na altura, as luitas nunca saiam debalde, e essa ganhamo-la, mas houvo que enfrentar sançons, enfrentar despedimentos. O importante é que ganhamos, e essa vitória permite reartelhar o funcionamento do hospital num sentido que na época chamávamos autogestionário, com várias comissons, responsáveis eleitos e revogáveis.

Que efeitos tivo em vós a repressom?

Era dura, mas permitia alcançar novas quotas de consciência. Imagina, o próprio director do centro, que era um homem formado no estrangeiro, é expulsado por secundar as nossas reivindicaçons. Nós decidimo-nos a seguir a nossa presom, este director é readmitido, e num contexto de luita permanente, a ideologizaçom é maior, até o ponto de pôr em causa muitas cousas que nunca se questionaram.

Que questionávades exactamente?

Aquele modelo tam peculiar de psiquiatria franquista, que é umha peculiaridade hispana muito curiosa. Por causa do nacional-catolicismo, em Espanha nom triunfara aquela aposta na eutanásia massiva que foi própria do nazismo, mas também de vários Estados democráticos na II Guerra Mundial. Aqui decide-se manter os doentes vivos, mas que acontece? Que se habilitam para eles umhas estruturas enormes, que chegam a acolher um milhar de pessoas, que nom existiam na Europa. Tratava-se de instituiçons de orde que disciplinavam e recolhiam gentes muito diversas. Nos psquiátricos estavam mesmo as chamadas patronatas. Eram mulheres rebeldes, insubmissas por causas diversas, enfrentadas à família, ou desobedientes com os hábitos que se supunham próprios da mulher, e que passavam ao Patronato de Protecçom da Mulher. Se tampouco se adaptavam ali, pois iam aos psiquiátrico. O mesmo acontecia com o chamado pavilhom de judiciais. Acolhia pessoas que cometeram algum delito sob os efeitos dumha crise mental, e nom saíam de ali nom sendo que se curassem. Enfim, que naqueles centros acumulavam-se vários sedimentos de doentes, por causas diferentes, e a receita aplicada era a disciplina e o encerro. A nossa motivaçom fundamental era transformar aquelas instituiçons, transformá-las e abri-las.

Rendueles, numa entrevista em Televisión Española em 2014. @RTVE

Qual foi a vossa inspiraçom teórica?

As ideias antipsiquiátricas começam a chegar a nós naquela altura. Existiam duas correntes fundamentais. A anglosaxona nom nos tocava muito de perto, porque estava centrada na psicopatologia da família, em como as doenças mentais se transmitiam no círculo mais próximo. A nós a que nos marca é a italiana, a de Franco Bassaglia, que daquela já tinha contactos directos na Catalunha. Dous livros fôrom chave para nós: A instituiçom em negaçom e O doble da doença mental. A tese era a seguinte: a loucura do manicómio nom era a real, senom um doble criado polo próprio encerro. Até que nom saimos do encerro, nom sabemos que acontece realmente com a doença das pessoas. Eu vim a literalidade dessa situaçom com o exemplo dos zoológicos: é como se vemos um chimpanzé em catividade, como se o observamos, e concluímos: ‘o chimpanzé dedica-se a andar dum lado para outro durante todo o dia, e a masturbar-se. Isso é o que fai’. Mas isso nom é o chimpanzé. Esse é o chimpanzé em catividade. Com os seres humanos passa-se umha cousa semelhante. Puidem comprovar esta realidade em casos concretos, com pessoas: os esquizofrénicos catatónicos, por exemplo, tenhem um sentido forte de territorialidade. Passam o dia quase inertes, mas se algum ocupa o seu espaço, ponhem-se agressivos. Porém, se saem do encerro, perdem esta condiçom de territorialidade. E algo semelhante sucedia no chamado pavilhom de agressivos. Se eram dispersados no interior do centro, se deixavam de estar concentrados neste empraçamento, a sua violência esmorecia. Portanto, havia exemplos que confirmavam a nossa aposta por fechar ou reduzir no máximo os manicómios.

“O nosso primeiro erro foi umha espécie de esquerdismo, de infantilismo. Havia doenças mentais que nom se curavam apenas pola abertura do manicómio. E o nosso segundo erro tem a ver com a ideia da recepçom social dos doentes. A doença mental seguia a ser um estigma.”

É umha luita que, em certa medida, ganhades, mas tu tes assinalado em ocasions os defeitos daquela visom teórica que defendíades. Desenvolve por favor esse balanço crítico.

O certo é que livramos umha luita longa, e os seus ritmos estavam mui condicionados polos movimentos repressivos. Por vezes a brigada de informaçom mandava os grises a assaltar as residências em que havia reivindicaçom, logo éramos retaliados, eu por exemplo acabei fazendo a mili em Ferrol e na Gomera como puniçom política. Vós sabedes bem o que aconteceu em Conxo. Existiam listas negras, de maneira que gente como eu tinha dificuldade de topar trabalho em outro centro depois de ser repressaliado no seu anterior destino. Esta história tam dura ainda está tam escrever, mas claro, a lógica da reconciliaçom nacional e do Regime de 78 apagou esta memória. Enfim, a luita avança, mas nesta segunda jeira é quando começamos a detectar os limites das nossas teses. Porque, com efeito “o duplo nom era todo”, por empregarmos a terminologia de Bassaglia. Esse foi o nosso primeiro erro, umha espécie de esquerdismo, de infantilismo. Havia doenças mentais que subsistiam bem além dos muros do encerro, que nom se curavam apenas pola abertura do manicómio. E o nosso segundo erro tem a ver com a ideia da recepçom social dos doentes. A doença mental seguia a ser um estigma e ninguém, ou muito pouca gente quer as pessoas atingidas no seu prédio, no seu centro de trabalho, no seu sindicato. O bloqueio foi total, neste sentido. Carecíamos de instituiçons intermédias como as que existiam na Europa: obradoiros, centros de dia, onde estas pessoas fixeram a sua primeira aterragem no exterior, e pretendemos a sua inserçom directa. A resposta da maioria da gente foi dessoladora.

Supujo isto para ti um desencantamento pessoal?

Foi um golpe forte. Nom apenas pola comprovaçom de parte das nossas teses serem erradas, senom por essa reacçom social que falamos. Eu mudo o meu trabalho, e passo a trabalhar num centro de saúde e numha clínica privada, porque nos hospitais gerais, ainda que em tamanho reduzido, continuam com a lógica do manicómio da sujecçom mecánica. E no que diz respeito a todos esses doentes que passam a viver em regime aberto, passo por umhas experiências bem desagradáveis. Tentamos introduzi-los em andares de acolhida, e damos por que a maioria das associaçons vicinais (muitas controladas polo PCE) nom os querem. Nos bairros obreiros de Xixom nom os querem, e eu encontro-me em situaçons curiosas, como por exemplo em bares, onde amigos e camaradas evitam a minha companhia, fam como que nom me vem. Naquela altura eu arredo-me da velha militáncia e mudo algumhas das minhas focagens. Recupero os contactos com o mundo libertário da minha primeira juventude, que é mais compreensivo com a problemática que a mim me ocupa. E também conheço directamente o catolicismo de esquerdas, um sector que se envolve directamente com os doentes mentais, que trabalha com pisos de acolhida.

Essa nova fase do teu compromisso coincide, polo que tes comentado, com umha ruptura social muito funda, em que a percepçom da saúde mental se transforma por completo. O neoliberalismo, polas tuas próprias palavras, “patologiza o malestar difuso”.

Isso é o que acontece, num processo passeninho mais imparável, desde as décadas de 80 e 90. Nós antes tratávamos o ‘tolo de verdade’, a ‘grande loucura’. E a gente que vinha à clínica, muitas vezes, trazia aquela frase feita de “eu nom estou de psiquiatra, venho forçado”. Bem, pois com o tempo, a situaçom inverte-se. Os verdadeiros tolos fam-se minoria e as nossas consultas enchem-se de gente que pensam ter doenças sem tê-las em realidade: um com ansiedade, outro com problemas de sono, outro com pequena depressom… na realidade, muitos dos nossos pacientes venhem com padecimentos que também sofremos os próprios psiquiatras. Eu, pola sua dimensom, chamei a isto “malária urbana”, e penso que se origina numhas condiçons de vida insalubres, cada vez mais privadas de dimensom colectiva. No neoliberalismo, a gente pede soluçons técnicas aos problemas da vida quotidiana: um tem insónio, por exemplo, porque padece um trabalho a quendas duro, outro ansiedade, porque as relaçons de poder na família som insoportáveis. O urbanismo gera também o seu próprio malestar, polo traçado das nossas vivendas, as urbes desumanizadas. E claro, isto com o pano de fundo das relaçons sociais populares enormemente deterioradas: o enfraquecimento da camaraderia de trabalho, de bairro, da amizade leal, das redes de mulheres… ao sei individualizarem todos estes espaços, fragmentando-se, um acaba na consulta do psiquiatra. E aqui os profissionais temos que enfrentar desafios inéditos. O dos trastornos alimentares, por exemplo, que é umha cousa que nom conhecíamos. Nas famílias, deixa-se de comer em colectivo, cada um leva os seus ritmos e horários, e generam-se padecimentos relacionados na soidade, em outra relaçom com a comida, com o corpo.

“O urbanismo gera também o seu próprio malestar, polo traçado das nossas vivendas, as urbes desumanizadas. E claro, isto com o pano de fundo das relaçons sociais populares enormemente deterioradas: o enfraquecimento da camaraderia de trabalho, de bairro, da amizade leal, das redes de mulheres…ao sei individualizarem todos estes espaços, fragmentando-se, um acaba na consulta do psiquiatra.”

Como enfrentades isto os psiquiatras?

Com umha pressom enorme. Socialmente, pretende-se que esta “pequena psiquiatria”, como eu a chamo, solucione cousas que nom pode solucionar. E aliás disso nom esqueçamos que emerge o mercado dos fármacos em massa. Nalgum dos sectores sociais que trato, nomeadamente mulheres de mais de 60 anos, o índice de pessoas que se medicam por malestares mentais supera o 50%. As empresas nom melhorárom os resultados daquelas velhas pílulas de antano, muito mais baratas, mas si que as refinárom. Produtos como o Prozac tenhem muitos menos efeitos secundários, e daí que joguem umha espécie de papel cosmético. Medicamo-nos para estar alegres, medicamo-nos para ter apetito, medicamo-nos para dormir, medicamo-nos para o sexo. Claro, isto é produto dumha ofensiva de mercadotécnia fortíssima das empresas farmacéuticas, que nos convidam a congressos pagos num ambiente de luxo oferecendo os seus produtos, avalados por vezes por prémios Nobel. E umha pressom parecida exercem sobre as famílias dos doentes.

“Medicamo-nos para estar alegres, medicamo-nos para ter apetito, medicamo-nos para dormir, medicamo-nos para o sexo. Claro, isto é produto dumha ofensiva de mercadotécnia fortíssima das empresas farmacéuticas.”

Quiçá esta inclinaçom social por patologizá-lo todo tenha a ver com umha falta de assunçom da dor como parte da vida.

Si, o hedonismo de massas nom assume a dor, e a medicina maioritária contribui para isto. Eu chamo-o narcisismo da medicina. A OMS define a saúde como “o máximo degrau de bem estar”. Isso que quer dizer? Que qualquer rebaixa nas expectativas de felicidade máxima é concebida como doença. O termo utilizado pola nossa geraçom, e vigente desde tempos de Freud, “neurose”, é substituído por “trastorno adaptativo”. Entom todos somos trastornados. Pois Freud chamava à neurose “psicopatologia da vida quotidiana” e referia-se a essas pequenas dores que padecemos inevitavelmente por muitos factores, e produzidas pola aspereza das relaçons humanas reais.

Como reagiche como psiquiatra neste novo contexto?

Fum muito ciente de que a esquerda estava num bache teórico, que a pressom dos laboratórios farmacéuticos nos desarmava… eu estava realmente desanimado. Foi entom quando descobrim novas achegas para analisar, e na medida possível combater, este processo de individualizaçom foi a esquerda foucaultiana. Há nesse sentido achegas muito interessantes dumha galega, Julia Varela, e também Fernando Álvarez Uría. Tenho colaborado o que puidem com este sector, e continuei a participar da Associaçom Espanhola de Neuropsiquiatria. É umha velha associaçom que arranca de tempos republicanos, com a que eu rachara, pola esquerda, há bastantes anos, mas hoje reconheço que é o único colectivo profissional que nom está colonizado polos laboratórios.

A outra cara da patologizaçom massiva destas décadas foi a expansom da personalidade calculista, que entende as relaçons humanas em termos de custe-benefício. Tu tens manifestado que quando o que a sociologia denomina ‘free-rider’, o egoísta planificador, é tolerado e se extende além dum certo limite, a sociedade corre o risco de colapsar. Podes desenvolver esta tese?

A teoria do free-rider nasceu em escolas sociológicas liberais, de direitas, e curiosamente foi aplicada ao estudo do colapso do socialismo real. Deita porém umha luz muito interessante para entender as nossas sociedades capitalistas. Esta sociologia fijo estudos muito detalhados, quantitativos, que aplicárom mesmo a sociedades de pre-homínidos. Por exemplo aos grupos de gorilas. Em certas comunidades de gorilas, os animais tenhem que despiolhar-se reciprocamente para manterem a saúde colectiva. Sempre há um certo número de gorilas que recebem o benefício de serem despiolhados sem despiolharem, mas se o número destes free riders supera um certo limiar, os conflitos extendem-se e o grupo disolve-se. Nom é muito diferente do que acontece no capitalismo desenvolvido. Desapareceu o prestígio do altruísmo, do dever, da entrega ao colectivo. A empatia enfraqueceu-se muito, já nom se adoita conceber a dor dos outros como própria. No socialismo real, a expansom do free rider deu lugar a umha expansom insostível da burocracia, a formaçom de comités para supervisons de comités, e outros comités para o estudo de nom sei que comités… no capitalismo funciona de outro modo, a partir do cálculo do sucesso individual, mas o processo é parelho. Freud ajuda-nos também a compreender isto. Tendemos a pensar que as patologias, se se conhecem, som algo que a pessoa quer superar, mas nom sempre é assi. As vezes a gente afunda nas patologias porque entende que lhe fornecem certos privilégios. Freud chamou-no “a vantagem como sintoma”, e aplicou-no aos histéricos: pessoas que, pola satisfaçom de chamarem a atençom, estavam dispostos a passar todo tipo de penalidades. A mesma análise pode aplicar-se ao vitimismo, ao gozo de sentir-se espezinhado. E na nossa sociedade também há muitíssimas pessoas que procuram a vantagem como sintoma a través do egoísmo calculador. Porque o free rider é na realidade o heroi da nossa sociedade, e entrou no ámbito das relaçons de parelha, familiares, no mundo laboral. Por isso se elude o conflito colectivo em favor de estratégias de subsistência individual. Se iso se espalha ainda mais, estamos fundidos.

“O free rider é na realidade o heroi da nossa sociedade, e entrou no ámbito das relaçons de parelha, familiares, no mundo laboral. Por isso se elude o conflito colectivo em favor de estratégias de subsistência individual.”

“Se até agora o abuso do mundo virtual nom incrementou o nosso bem estar, senom todo o contrário, a soluçom passa, quanto menos, por nom insistir na mesma receita.”

A esquerda baseou a sua intervençom histórica nas lealdades de classe, vicinais, na camaradagem de partido ou sindicato. Hoje parece gravitar sobre todo em afinidades parciais que se fabricam no meio virtual, coincidências de opiniom a distáncia. Que efeitos pode ter isto?

Para mim, negativos. Com efeito, as velhas solidariedades nasciam nas relaçons cara a cara. Nom só na factoria, senom no convívio prolongado, no partilhar todo um mundo de vida para além do laboral. O que estamos a viver é muito novo e porém eu já o tenho na clínica: rapazada que bota oito horas ao dia no computador, os pais preocupados polas suas dificuldades de socializaçom, celebridades que ganham a vida por publicitarem os seus gostos na rede. Os efeitos na esquerda deste fenómeno estudou-nos César Rendueles na obra Sociofobia, que acho é um termo muito apropiado. A fantasia de parte da esquerda contemporánea já nom é tomar nenhum poder, nenhum lugar físico, senom a rede.

Em quanto o presente…

Eu, quanto ao presente, o futuro imediato, som pessimista, mas tampouco nom me resigno e as cousas podem mudar num sentido totalmente diferente. Neste momento, o único que podemos dizer é contrapor as ideias ilustradas, a liberdade, igualdade, fraternidade, e o encontro físico, a todo tipo de soluçons íntimas. E dizer que, se até agora o abuso do mundo virtual nom incrementou o nosso bem estar, senom todo o contrário, a soluçom passa, quanto menos, por nom insistir na mesma receita. Por agora nom podemos dizer muito mais.

Defendes várias ideias valentes e também impopulares esquerda. Reflectes, por exemplo, sobre a prisom. O mundo penitenciário é-lhe indiferente a boa parte da esquerda, e o sector que se preocupa com ele, nomeadamente o libertário, aposta na sua aboliçom. Tu, pola contra, tes manifestado que as prisons devem existir, “porque o mal existe, e nom lhe podemos virar as costas”. Em que baseas esta posiçom?

Em que acho que há umha via intermédia entre o pensamento liberal, o de construamos mais cárceres, e o rousseaunismo ingénuo, que diz que o mal procede apenas da opressom de classe. Nom, o mal existe. Tenho matinado sobre ele, e venho de escrever num livro sobre isto, a fundo, a propósito da experiência nazista. A mim também me atormentou essa questom que atormentou a Semprún, e a Levi, de como a naçom mais culta da Europa abraçou o nazismo; e como aqueles homens que tocavam a Beethoven no piano depois cometiam atrocidades indizíveis. E estou em desacordo com Hanna Arendt quando fala da banalidade do mal, e diz que Eichmann era um burocrata, um idiota, umha pessoa vulgar. Nom, era um autêntico monstro, e nom se explica apenas pola burocracia. Entom, eu acho que há um momento de liberdade que permite o mal, há umha responsabilidade, e nom todo o explica a estrutura, nem as condiçons. Entom, como o mal existe, há que esculcá-lo, e prevê-lo no possível, de forma realista. Por vezes vê-se em comportamentos infantis, no gosto pola crueldade, e logo extende-se na adolescência, por exemplo nessas bandas juvenis que aterram as mulheres de maneira massiva em países como México. A esquerda americana, particularmente norteamericana, tem-no estudado muito bem, mesmo com modelos quantitativos. Nos USA há estudos da violência com métodos epidemiológicos que descobrírom que, em certos bairros, há umha extensom do mal que segue este processo contagioso das epidemias. O que se trata é de detectar os focos, e tentar neutralizá-los com mediadores, com interventores profissionais. Nisso cumpre umha funçom muito importante o sistema escolar, mas também a prisom, e logo a atençom à saída da prisom. A isso me refiro quando falo de gerir o mal.

“Há muita gente imune à razom. Senom como explicamos o racismo? Vemos muita gente, milhares e milhares de pessoas, que som racistas, e ainda se lhe damos razons sólidas em contra, mais racistas se fam. Eu acredito na utopia, nas mudanças radicais, mas estas som longa.”

Em outra das tuas declaraçons, politicamente incorrectas, acusas comportamentos da esquerda próprios da ‘dissonáncia cognitiva’, e que para ti se originam num optimismo sem fundamentos que se basea em afirmar que ‘venceremos passe o que passar’.

Si, isto apliquei-no ao PCE na ditadura, do que era militante, e supujo-me perder amizades (risos). Dirigentes como Carrillo e Santiago Álvarez estavam a dizer-nos cada ano que o regime estava para cair. E muitas vezes a expor-nos à repressom, sem cautela nenhuma, com a falsa expectativa de que a ditadura se esboroava. O fenómeno passa em grupos humanos diversos, e chama-se dissonáncia cognitiva. Mesmo pugem o exemplo dumha seita milenarista norteamericana, composta por gente muito inteligente, e profissionais formados, que tinham marcado o fim do mundo para umha data determinada. Quando o fim do mundo nom se produziu, contra toda evidência, eles nem deixárom a seita nem reconhecêrom o errado da sua previsom, senom que dixérom que o planeta continuava porque tinham rezado muito. Nom é umha caricatura, é real. Entom, na esquerda, a realidade é muito dura, muito difícil, mas nós queremos acreditar que a vitória vem aí, e nom demora. E artelhamos argumentos enrevessados com este sesgo cognitivo errado. Eu, nesse sentido, aprendim muito da minha experiência sindical. Militei na Corriente Sindical de Izquierdas, e nom me foi mal, como delegado, e curiosamente foi-me fatal como militante de Izquierda Unida. Ao falar com os meus companheiros de trabalho, diziam-me: ‘nom,é que nos caes muito bem, do que nom gostamos é das tuas ideias. Porque de triunfarem os teus, na política, imos perder o piso’. E cousas do género. A que conclusom cheguei? Que o liberalismo é forte, que tem grandes apoios sociais, e nom tem a ver estritamente com a razom. Há muita gente imune à razom. Senom como explicamos o racismo? Vemos muita gente, milhares e milhares de pessoas, que som racistas, e ainda se lhe damos razons sólidas em contra, mais racistas se fam. Eu acredito na utopia, nas mudanças radicais, mas estas som longas, e nom podemos fechar os olhos ao duro da realidade.

Junto a esta dissonáncia cognitiva, o fenómeno do cissionismo também pode ser explicado com fundamentos psicológicos.

Pode, porque é o reverso do mesmo problema. Como as profecias nom se cumprem, antes de reconhecermos que muitíssima gente nom gosta das nossas ideias, preferimos canalizar a frustraçom contra o outro, o do lado, ou o colectivo rival: o que nom militou bem, o que nom é bom, o discurso que se fijo mal. É um tipo de sadomassoquismo, todo para nom assumir de maneira fria que a direita tem umha base popular forte e arreigada que nom descansa apenas em razoamentos. Numha atitude, a nossa, que nos culpabiliza e nos frustra numha flagelaçom sem sentido. Eu acho que o sensato é instalar-se num certo pessimismo do presente, mas sabendo que a longo prazo todo pode mudar, mesmo o mais consolidado.

O entrevistado

Guillermo Rendueles

Guillermo Rendueles

Xixom, 1948. Ele se formou em medicina pela Universidade de Salamanca (1971) e recebeu um doutorado pela Universidade de Sevilha (1980) com uma tese que tomou como tema a esquerda freudiana. Em 1972, começou a trabalhar no Hospital Psiquiátrico de Oviedo, onde entrou em contato com o movimento antipsíquico. Após o desencanto com a transição política, ele abandonou sua militáncia, mas no início dos anos noventa participou do movimento dos insubmissos, juntamente com seu próprio filho, César Rendueles. Ele é o autor, entre outros, dos ensaios: El manuscrito encontrado en Ciempozuelos (1989), La locura compartida (1993), e Las falsas promesas psiquiátricas (2017). Discípulo de Castilla Del Pino, colaborou com el em La sospecha (1998); E também participou de obras coletivas, tais como Neoliberalismo versus democracia (1998) IKE, retales de la reconversión (2004) e Pensar y resistir: la sociología crítica después de Foucault (2006). Hai uma entrevista em video de 2014 disponível no Vimeo: https://www.youtube.com/watch?v=lRgIQZlQ-ns.

Outras entrevistas

O entrevistado

Guillermo Rendueles

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Xixom, 1948. Ele se formou em medicina pela Universidade de Salamanca (1971) e recebeu um doutorado pela Universidade de Sevilha (1980) com uma tese que tomou como tema a esquerda freudiana. Em 1972, começou a trabalhar no Hospital Psiquiátrico de Oviedo, onde entrou em contato com o movimento antipsíquico. Após o desencanto com a transição política, ele abandonou sua militáncia, mas no início dos anos noventa participou do movimento dos insubmissos, juntamente com seu próprio filho, César Rendueles. Ele é o autor, entre outros, dos ensaios: El manuscrito encontrado en Ciempozuelos (1989), La locura compartida (1993), e Las falsas promesas psiquiátricas (2017). Discípulo de Castilla Del Pino, colaborou com el em La sospecha (1998); E também participou de obras coletivas, tais como Neoliberalismo versus democracia (1998) IKE, retales de la reconversión (2004) e Pensar y resistir: la sociología crítica después de Foucault (2006). Hai uma entrevista em video de 2014 disponível no Vimeo: https://www.youtube.com/watch?v=lRgIQZlQ-ns.

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